quarta-feira, 23 de março de 2016

A família de almas penadas

Esse causo ocorreu no Engenho Mupã, relativamente próximo à cidade de Escada onde minha mãe morava nos anos 50. Ela conta que sua tia e prima vivenciaram esta história quando acompanharam o então padre da cidade até um sítio neste engenho. Uma família de agricultores, que morava nesse sítio, costumava mandar seus dois filhos, de cinco e seis anos, cortar capim em um terreno afastado de sua casa, o que serviria para alimentar alguns animais do sítio. Naquela época, trabalho infantil era coisa muito comum, e os mais ignorantes não raro discursavam que criança devia mesmo trabalhar, pois brincadeira em casa de gente necessitada era coisa de pessoa mole. Pois um belo dia, essas crianças foram buscar capim e, sem mais nem menos, voltaram para casa desesperadas, deixando ferramenta, capim e chinelos para trás. As crianças só diziam que não voltariam novamente àquele local, e mais nenhuma explicação saia daquelas pobres bocas. Os pais gritaram, bateram nas crianças, fizeram de tudo para entender o porquê daquele comportamento, mas nada adiantou. Isso durou algumas horas, até que o maiorzinho, já mais cansado da surra do que assustado com o que viu, finalmente falou. Ele disse que no local onde eles comumente cortavam capim, viram três pessoas, mulher, homem e criança, vestidos de preto e olhando fixamente para eles, com olhos que não são desse mundo. O pai, em um primeiro instante não acreditou, e disse que, no outro dia, eles iriam trazer capim nem que fosse a base de cipoada nas canelas. A mãe, mais crente nas coisas do outro mundo, tentou convencer o marido que, talvez, as crianças tivessem realmente avistado alguma assombração. O marido, meio a contra gosto, mas para não contrariar a mulher, que quando emburrada mais parecia uma gato do mato arisco, resolveu ir à Escada, onde logo procurou pelo pároco local, o então padre João. Tocado pela situação, muito mais pelas crianças do que pelos pais, o padre se dispôs a fazer uma visita àquela família quão logo fosse possível. Quando finalmente o padre foi visitá-los, conversou com as crianças e pediu que eles o levassem até o local da aparição. Chegando lá, as crianças não tardaram a ver novamente as três almas penadas, bem junto a um barranco onde a prima de minha mãe, que acompanhou o padre em sua investigação, estava encostada. Essa prima saltou de susto, ao perceber que as crianças olhavam assombradas em sua direção. Já o padre, macaco velho com essas situações de visagem, pediu que os meninos perguntassem o que aquelas três pobres almas desejavam. Os meninos perguntaram e finalmente disseram que eles somente pediam uma missa. Pois bem, o padre disse que se era uma missa que eles queriam, uma missa seria celebrada para aquelas pobres almas no próximo domingo de manhã, e que a família das crianças deveria comparecer na ocasião. O problema todo começou quando, no dia da fatídica cerimônia, a família das crianças arrumou uma bela de uma romaria, com gente de vários sítios do engenho, toda aquela gente amontoada em cima de um caminhão, parando de légua em légua até finalmente chegar à igreja em Escada. Foi tanta gente a subir no caminhão, e eles atrasaram tanto que chegaram à igreja somente após a leitura do Evangelho. Foi aquele reboliço de gente entrando na igreja e tentando se acomodar. Finalmente, quando a família conseguiu prestar atenção à missa, mal puderam assistir somente ao final da cerimônia. Os pais das crianças agradeceram ao padre, e voltaram novamente em tamanha romaria para seus respectivos sítios. Porém, não se passaram três dias de tranquilidade, e o aflito pai das crianças retornou à igreja para dizer que, agora estava muito pior, pois aparentemente as almas penadas estavam aparecendo na porta de sua cozinha, e que as crianças nem saiam mais de casa com tanto medo. O padre disse que já havia celebrado a missa e que não retornaria ao sítio da família, mas que buscasse saber com seus filhos o que ocorreu de errado. O pai, chegando em casa, foi logo puxando o cipós de goiabeira e tratando de mandar os filhos resolverem essa safpadeza. Ou perguntassem o que aquelas almas dos infernos queriam ou iriam buscar capim com cipoada no lombo. O menino maiorzinho, muito aterrorizado e depois de alguns sopapos, olhou para aquelas três almas pálidas e vestidas de negro, bem ali na porta da cozinha, e perguntou o que eles ainda queriam deles. As almas somente responderam que queriam uma missa, mas que dessa vez as crianças deveriam assisti-la do começo até o fim. Pois bem, dessa vez a família saiu do Engenho Mupã até Escada sem falar nada para vizinho algum, evitando o olhar dos curiosos e todo atraso que isso poderia causar. Eles assistiram à missa desde o começo, e quando ela finalmente terminou, o padre perguntou às crianças sobre as almas penadas. Então as crianças disseram que os três estavam, agora, vestidos de branco, sorriam e acenavam com um gesto de adeus. Aquelas pobres almas nunca mais retornaram para assombrar as crianças, nem tampouco interromper seus afazeres domésticos no sítio. 

domingo, 20 de março de 2016

Não brinque com a réstia


Minha mãe foi criada por sua tia madrinha e pela avó paterna na cidade de Escada, mas durante algumas férias, quando ainda tinha por volta de quatro a cinco anos, costumava visitar seus pais em um sítio no Engenho Massauassu. A água era de poço, a iluminação de candeeiro, e a casa dos meus avós era bastante afastada de outras casas, em meio à cana de açúcar e algumas matinhas que existiam na região. Meu avô costumava usar a desculpa de que precisava comprar querosene em um barracão da usina, léguas longe dali, e todo santo dia ele saia cedo e voltava já tarde, com aqueles dois dedinhos de querosene para acender o candeeiro. Mas na verdade, ele voltava mesmo era bastante cheio de pinga. Enquanto isso, minha mãe costumava ficar com minha avó durante todo o dia, a ajudá-la com os afazeres domésticos, como ir buscar água no poço, procurar por lenha perto do aceiro da mata, cuidar do jardim repleto de cravos e, às vezes, brincar com bichinhos feitos de batata e palito. À tardinha, minha avó costumava dar banho em minha mãe usando uma bacia e um canequinho, sempre à luz do candeeiro ou mesmo de uma vela. Minha mãe conta que durante esses banhos ela achava extremamente divertido observar sua réstia na parede da casa, e que corria de um lado para outro em uma banqueta de madeira só para ver sua sombra enorme projetada na parede. Minha avó, sempre advertia: “Não brinque com a réstia, menina! Você vai se assombrar à noite”. Minha mãe não dava à mínima, e continuava brincando, por várias ocasiões em que tinha oportunidade. Até que uma noite, sem nem mais lembrar do que sua mãe costumava lhe dizer sobre essa possível assombração, minha mãe já estava deitada em sua rede, no quarto onde dormia, quando percebeu que na parede do quarto, bem a sua frente, havia uma velha. Isso mesmo, uma velha, que parecia de carne e osso, mas que ela não a conhecia. Aquela velha era muito magra, corcunda, de nariz muito pontudo e encurvado, vestida de preto, e a observava atentamente. Minha mãe jura que não era réstia de alguma planta na janela, nem mesmo que ela estava dormindo. Ela fechava os olhos e ao abrir, a velha continuava lá, materializada, olhando-a fixamente. Minha mãe começou a chorar desesperada, chamando por sua mãe, enquanto aquela velha, que mais aparentava ser uma bruxa comedora de criancinhas, sumiu tal qual fumaça no ar. Naquela noite, minha avó correu ao quarto e ficou com minha mãe até ela adormecer. Depois disso, a velha tenebrosa não voltou a aparecer, e minha mãe parou com suas peraltices, deixando sua própria réstia em paz.


sexta-feira, 18 de março de 2016

A freira que vigiava

Minha mãe passou alguns anos interna em um colégio de freiras em Caruaru, o Lar Santa Maria Gorete, até aproximadamente seus 27 anos, o que coincide com o final da década de 70. O colégio possuia dois grandes dormitórios de meninas, em diferentes andares, e, como de costume, toda santa noite a madre superiora visitava os dormitórios para averiguar se não faltava alguma menina em sua cama. Isso era tão rotineiro que elas já esperavam pela passagem da madre, e aquelas que planejavam saídas furtivas à noite programavam-se muito bem para isso. Uma certa noite, enquanto todas as meninas já haviam se recolhido, minha mãe disse que a madre entrou no dormitório onde ela ficava, e se dirigiu lentamente em direção a sua cama, observando e averiguando cautelosamente o ambiente. Seus passos eram lentos e bastante pesados, e era até possível ouvir sua respiração cada vez mais próxima. Foi então que minha mãe, ainda acordada, se virou em direção à madre para dar um boa noite ou outro cumprimento. Como a freira já estava suficientemente perto de sua cama, ao virar-se ela ficou em frente àquele hábito negro, começando a seguí-lo com seus olhos até alcançar o rosto da religiosa. Ela conta que tudo estava lá, a roupa, os pés, os braços, mas, para seu completo espanto, não havia cabeça alguma naquela freira. Ao perceber que não se tratava de uma madre de carne e osso, ela se se cobriu com o lençol e ficou quietinha por toda a noite, como se aquele gesto a protegesse daquela assombração católica. Já ouvi dizer que mulheres que se reacionam com padres viram mulas sem cabeça, mas qual seria a causa para uma freira sem cabeça? No dia seguinte, minha mãe se manteve calada sobre o ocorrido, talvez pelo receio em ser motivo de chacota entre as outras meninas. No entanto, enquanto ela tomando seu café da manhã no refeitório, juntamente com todas as outras internas e as freiras, ouviu, em um canto esquerdo da mesa, um alvoroço de algumas meninas a dizer que nem haviam dormido na noite anterior. Elas alegavam que viram uma cabeça de freira flutuante, justamente na janela do dormitório do primeiro andar. Minha mãe, não mais reçabeada, resolveu compartilhar também seu avistamento, e todos ficaram assombrados com o fato de uma freira fantasma ter aparecido em dois dormitórios ao mesmo tempo, sendo a cabeça no primeiro e o corpo no segundo andar. Seja lá o que foi, certamente essa visagem desenvolveu uma estratégia de vigília bastante eficiente.


A moça do arruado da linha

Minha mãe contava que quando vivia em Escada, por volta do ano de 64, mesmo ano em que o Golpe militar depôs o então governador do estado, Miguel Arraes, e o então prefeito da cidade de Escada, ficou sabendo de uma história apavorante. Era costume, à noite, que as crianças, incluindo minha mãe, brincassem no pátio da igreja matriz da cidade, localizada ao final de uma ladeira, enquanto alguns adolescentes e adultos conversavam, contavam histórias ou tocavam algum instrumento para se divertir. Entre essas pessoas, estava um colega de minha mãe, com provavelmente seus dezessete anos. O rapaz era um galego de olhos de gato, até bastante apessoado, que comumente, entre uma conversa e outra, tocava seu violão na calçada de casa, que ficava um pouco acima na ladeira da igreja, até altas horas da noite. Isso se repetia em quase todas as noites, e, em uma delas, quando não havia mais ninguém pelo pátio da igreja ou nas ruas próximas, por volta de meia noite e meia, o rapaz praticamente havia se esquecido do tempo. Enquanto tocava calmamente seu violão, ele percebeu que havia uma moça, vestida com a farda do Colégio Nossa Senhora da Escada, sozinha bem ali no pátio da igreja. Aquela moça morena e de cabelos negros e longos começou a fazer um sinal com a mão, chamando o rapaz até ela. O rapaz, com o fogo da juventude e sem pensar duas vezes, parou de tocar seu violão, deixou-o no terraço de casa e logo correu ao encontro da moça, descendo um trecho da ladeira. Foi então que a moça pediu ao rapaz que ele a levasse em casa, alegando que morava longe e estava com muito medo de voltar sozinha tão tarde em meio aquela noite sombria. O rapaz ficou tocado com a situação, e já pensando em algo a mais que aquela situação poderia lhe oferecer, logo concordou em fazer companhia àquela moça até sua casa. Afinal, que mal haveria em ajudar uma pobre moça, e, quem sabe, de quebra ganhar um acalento. A moça morava no chamado arruado da linha, um pequeno vilarejo afastado do centro com cinco casas ao longo da linha férrea que, naquela época, partia de Recife, passava por Escada e destinava-se a Maceió. Pois bem, quando ambos chegaram próximo à vila, a uns cem metros da primeira casa, a moça parou repentinamente. Ela agradeceu ao rapaz e disse enfaticamente que não era necessário leva-la até a porta de sua casa, já que seu pai não iria gostar de vê-la em companhia de um rapaz desconhecido. O moço entendeu perfeitamente e voltou para casa depois do ocorrido. O mesmo evento se repetiu nas próximas duas semanas, e o rapaz foi criando grande empatia por aquela moça de olhar faceiro. Porém, na terceira e última semana, em uma noite mais fria que o normal, o rapaz chegou a emprestar-lhe um casaco vermelho. A moça, bem como nas outras vezes, não quis que o rapaz a levasse até a porta de sua casa, mas disse que lhe devolveria o casaco na próxima vez em que se encontrassem. Embora o rapaz esperasse pela companhia da moça nas semanas seguintes, afinal ele até cultivava certa esperança em namorá-la, a moça simplesmente sumiu por um mês. Foi então que o rapaz, já cansado de tocar melodias de sofrimento em seu violão, criou coragem e finalmente foi procurá-la naquelas casas do arruado da linha. A moça havia lhe dito seu nome, então tudo que ele precisava fazer era bater nas cinco casinhas da vila e perguntar por ela. Chegando à primeira casa, instantaneamente ele observou um quadro pendurado na parede da sala e com a fotografia da moça, vestida com a mesma farda do colégio. Uma senhora meio corcunda e segurando um cachimbo na boca, chegou até a portinha de madeira partida ao meio, quase que se arrastando desde sua cadeira de balanço. Ela o fitou tal qual tivesse preguiça de falar, e o rapaz, meio que sem jeito, perguntou pela moça da fotografia na parede. Aquela senhora se apresentou como mãe da moça e, em tom meio ríspido e uma cara emburrada, pitando aquele cachimbo enegrecido de fuligem, foi logo perguntando de onde o rapaz conhecia sua filha e o que ele queria com ela. Já o rapaz, bastante educado, lhe contou sobre os três eventos anteriores em que havia acompanhado sua filha até muito próximo da vila, mas que nunca a moça o deixara se aproximar de sua casa por medo do pai muito bravo. Foi então que o semblante aquela senhora mudou completamente, e ela o revelou que aquilo não poderia ter ocorrido já que sua filha estava morta há dez anos. A senhora o olhou fixamente, balançou a cabeça em negação e deu-lhe as costas, voltando para sua cadeira de balanço e tornando a pitar seu cachimbo e encher o ar de puro fumo. O rapaz, completamente estupefato, não acreditou naquela maluquice da velha cachimbeira, e insistiu em ver a moça, achando que a senhora tentava ludibriá-lo a fim de afastá-lo de sua filha. Nesse momento, a senhora já muito chateada e ainda mais emburrada, tirou o cachimbo da boca e disse ao rapaz que fosse ao cemitério da cidade, procurasse pelo túmulo com determinado número, e ele encontraria o que tanto queria. O rapaz, ainda incrédulo, mas bastante curioso, saiu daquela casa direto para o cemitério. Procurou pelo endereço indicado durante meia hora, e quando já pensava em voltar para casa, xingando aquela velha cachimbeira mentirosa de todos os nomes, para sua surpresa, já bem próximo do portão principal, ele viu um túmulo bastante singelo e com a mesma foto da moça que procurava, uma fotografia igual a que ele viu pendurada na sala da primeira casa do arruado. Tão grande também foi sua surpresa, ao ver ali, quase que desbotado pelo sol, seu casaco vermelho, suspenso na cruz do túmulo da moça. Depois desse dia, o rapaz não tocou mais violão até tarde da noite em frente a sua casa, e tampouco arrastou asas para moças indefesas que perambulavam de uniforme escolar depois da meia noite pela antiga Escada.

Prefácio da obra

Essa coletânea surgiu de uma necessidade grandiosa e intrínseca de registrar um passado mágico e rico de histórias fantásticas, as quais, por muito tempo (e talvez ainda), permearam meu cotidiano infantil na região metropolitana do Recife entre as décadas de 80 e 90. Essas histórias são, em sua grande maioria, advindas de contos da minha própria família. Mas também contribuíram muito para essa humilde coletânea as ouvidas dos vizinhos e de conhecidos que, periodicamente, visitávamos em localidades mais longínquas.  
Muitos dos causos relatados aqui são advindos de histórias ocorridas em municípios da atual grande Recife, sendo em sua grande maioria provenientes de localidades mais afastadas e ainda chamadas de engenhos. Dentre essas localidades, algumas ainda possuem grandes canaviais e usinas de beneficiamento de açúcar e derivados, enquanto outras viraram bairros afastados ou pequenos povoados, praticamente perdidos da civilização. Para fins de compreensão sobre a distribuição espacial das histórias, o leitor poderá acompanhar o mapa detalhado de muitas das localidades retratadas aqui nesta obra.
Visto que passei toda minha infância e juventude em Ponte dos Carvalhos, atual distrito do município do Cabo de Santo Agostinho, que abarca trechos do litoral sul e da Zona da Mata pernambucana, muitas histórias se passam neste município, e já outras representam causos ouvidos ou presenciados por familiares e conhecidos em municípios próximos, ao exemplo de Escada e São Lourenço da Mata. Ora haverá algum relato ocorrido em Caruaru, no Agreste pernambucano e, para não dizer que não falei de Recife, haverá histórias provenientes da própria capital.

Finalmente, gostaria de agradecer imensamente a todos que contribuíram com suas histórias fantásticas, contadas com tanto entusiasmo e verdade, que me fizeram uma eterna apaixonada pelos causos e contos que o povo conta. Esclareço que há uma pitada de interpretação pessoal nas crônicas e, por isso mesmo, fiz questão de relatá-las como me lembrava delas, resgatando um “quê” de perplexidade e encanto infantil, de quando eu ouvia essas histórias, muitas vezes sentada à mesa da nossa cozinha, nos dias em que faltava energia elétrica e a família se reunia ali por horas. E eu, incoerentemente medrosa e corajosa, ouvia atentamente, e logo pedia por mais causos, especialmente os de mal assombro e outras visagens desse e do outro mundo.

Periodicamente, novas histórias serão postadas aqui. Veja a seguir, uma lista delas:

Sumário