quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Epílogo

Termino essa pequena coletânea de causos com a sensação de que muitas dessas histórias, especialmente as que envolvem entidades mágicas, têm se tornado cada vez mais raras. Muitos interpretam isso como uma evolução cultural da sociedade, uma demonstração de que nosso povo se tornou educado e já não acredita mais em assombração que sai do mato para correr como visagem, seja feito lobisomem, perna cabeluda ou uma alma zombeteira. Mas, caro leitor, eu não concordo muito com isso, não! E vou lhe explicar o porquê, daí você decide!

    Muito pelo contrário, eu enxergo tal comportamento como uma perda de identidade cultural e apreço pelas estórias encantadas do passado. Quem ainda sabe contar, muitas vezes reluta em fazê-lo quando solicitado, pois tem receio de ser zombado. Outros, mais jovens, simplesmente colocam na cabeça que a fábula da tv ou vídeo game é muito mais interessante do que a narrativa do seu avô. Mas, pensando bem, eu até entendo os mais novos: como ficar com medo da Comadre Fulozinha ou do Tôsseco, se nem existe mais mata decente perto de casa que ponha medo de topar com essas entidades? E quando há um fragmento de vegetação, medo mesmo é de topar com um sujeito de dois braços e duas pernas, não muito cabeludas, armado com pistola calibre, sei lá, quanto. Afinal, é só isso todo dia no noticiário!
E Ponte dos Carvalhos... ah, caro leitor! Esse bairro é há tempos famosíssimo nos jornais mais encarnados da região metropolitana do Recife. Até parece que o pai do mangue fez muito bem seu trabalho, protegendo o lado de lá do rio, onde condomínios de alto luxo residem na charmosa Reserva do Paiva, porém esqueceu-se mesmo foi do vilarejo com seus antigos pescadores, que vivem hoje em meio ao esgoto, lixo e violência, e que de tão acostumados, nem percebem mais. Perceber o quê mesmo? Ou vai ver que esse tal de pai do mangue é muito do esperto, e resolveu viver no lado chique do rio, onde, espero eu, o esgoto seja tratado. 
Talvez, caro leitor, eu esteja mesmo é sendo muito saudosista e revivendo uma memória que nunca foi tão bela assim. Afinal, quando se é criança, tudo tem lá seu encanto. Lembro-me do antigo trem a diesel, em seus últimos áureos anos, atravessando o mangue que margeava os rios Pirapama e Jaboatão, ainda bastante preservados. Recordo-me da antiga fábrica de zinco, em meio a um bananal, que eu julgava ser uma mata sem fim, onde hoje fica o bastante deteriorado Parque dos eucaliptos. Por que não falar da última grande floresta de restinga do nosso estado, da qual quase nada sobrou, nas terras da antiga e polêmica fábrica de pólvora em Pontezinha (cujo último acidente rendeu histórias assombrosas demais para contar). O engenho Bela Vista, com seu casarão já muito desgastado, de onde se avistavam os coqueirais da outrora deserta praia do Paiva. Os campos de capim com flores cor de rosa, a balançar ao vento, e que logo terminavam em um caminho cheio de xiés, correndo para suas tocas na beira do manguezal. A igrejinha de Santo Antônio do monte, datada do período colonial, que agora se vê ameaçada por grandes empreendimentos que derrubam os morros, vendem a terra e os terrenos já aplanados.
Pois é, muito mudou, o progresso chegou por essas bandas, com grandes galpões de indústrias ligadas ao crescimento do porto de Suape e da instalação da refinaria Abreu e Lima. Porém, entristece mesmo o coração ver que foi um progresso desordenado, sem muito planejamento, sabe? Sem quaisquer preocupações com consequências para a urbanização local, qualidade de vida das pessoas e preservação do meio ambiente. Muito dinheiro foi injetado na economia local, e ao caminhar pelas ruas do antigo bairro onde cresci, vejo que muitas delas finalmente foram calçadas e há saneamento, após algumas décadas de descaso. Muitos moradores já não têm mais jardins e quintais. Algumas casas são contínuas com os muros e não faltam construções improvisadas. A linha do trem é margeada por mucambos, que muito me fazem lembrar a já decadente Macondo. O esgoto de muitas casas ainda segue direto para os riachos e para o mangue. O lixo transborda e parece proliferar sozinho, dia após dia. Próximo à estação de trem são muitos os bois, cabras, cavalos, gatos e cachorros que se alimentam do lixo exposto a céu aberto, enquanto do lado oposto da rua vê-se casebres com esgoto a céu aberto e pessoas lavando seus carros recém-adquiridos, pois esses sim merecem ficar limpos. Os carros brigam com os transeuntes, e não é raro ouvir dos moradores que os carros sobem nas calçadas e os pedestres é que caminham nas próprias ruas. Espaços públicos de convivência são poucos, mas quando reformados ou construídos, costumam ser depredados em menos de um ano. O som alto impera, seja nos carros ou nas casas, e é praticamente impossível praticar o sossego, ler um livro ou mesmo ouvir sua própria música (em baixo volume) no final de semana. O antigo trem a diesel foi substituído pelo VLT – veículo leve sobre trilhos – antiga promessa de oferecer um transporte rápido ligando a cidade do Cabo à linha sul do metrô de Recife. O trem é muito moderno e bastante rápido, mas os intervalos entre as viagens são inimagináveis. Vou me abster de detalhar sobre a falta de funcionários nas estações, do pouco cuidado com o trem por parte dos usuários e, inclusive, do drible ao pagamento da passagem para embarcar na estação do bairro. Caro leitor, aqui eu o convido para refletir se eu estaria equivocada ou há algo de muito errado nisso tudo? Se a máquina pública estivesse, de fato, engajada em educar sua população com conhecimento básico e de boa qualidade a todos, excluindo-se todos os discursos e balelas de tom político-partidário, estaríamos assim? Não desejo me estender nesta discussão, pois, afinal esta é uma obra de relatos de assombro/fantasia, e você, caro leitor, deve ter vindo em busca disso. No entanto, é triste perceber que a realidade do bairro, que foi cenário da maioria dos causos retratados aqui, é bem mais assombrosa do que todas as histórias de assombração.
Finalmente, é preciso deixar claro que essas histórias são de uma época que ficou para trás, com memórias de um local que talvez só tenha existido em minha mente infanto-juvenil. E, como eu dizia inicialmente, as localidades, antes rurais, se tornaram cada vez mais urbanas, distanciando-se dos pensamentos irracionais envolvendo o medo de fantasmas endêmicos e entidades presepeiras. Os mangues e matas, no entorno das comunidades, têm sido constantemente destruídos. As pessoas já não criam mais animais, nem cultivam em seus quintais. Criaturas ao exemplo da Comadre Fulozinha, Pai do Mangue, Tôsseco, entre outros, perderam espaço para a civilização, para os criminosos de plantão. As crendices populares já não são mais tão fortes, e as crianças não acreditam tão facilmente nesses causos. Se isso é bom ou ruim, sinceramente não sei. Afinal, o bairro onde cresci progrediu muito nos últimos anos, de um antigo engenho de cana de açúcar, passou para um loteamento sem saneamento, até um movimentado e vizinho bairro, porém isolado, da europeizada reserva do Paiva, e a poucos minutos da tão falada Refinaria Abreu e Lima. Mas isso, caro leitor, são outros causos que o tempo há de reunir para outro alguém contar.

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