quarta-feira, 15 de junho de 2016

Simpatia para ganhar no bicho


O jogo do bicho sempre foi algo rotineiro na vida dos pernambucanos. Nas décadas de 70, 80 e 90, ganhar no bicho era praticamente a única esperança de melhorar de vida para muitos indivíduos. Afinal, podia-se ter várias tentativas para ganhar no bicho, fosse na corrida da tarde, às 16h, ou à noite, às 19h (depois inventaram o horário do meio dia e, mais recentemente, soube que há inúmeros horários diferentes, o que para mim não tem a mesma magia); na cabeça ou no quinto, milhar, centena ou dezena, ou ainda o grupo. Sem contar aqueles 25 bichos coloridos, que podiam aparecer em sonho ou mesmo dentro de casa para dar o sinal, certeiro, do prêmio!!! Além disso, todo mundo conhecia alguém que já tivesse ganhado um troquinho no jogo do bicho, diferente das nacionalmente famosas Loto, Sena, Baú, entre outras premiações. Enfim, jogar no jogo do bicho era praticamente sagrado para muita gente. Era costume, lá no bairro, que as pessoas já tivessem seus números favoritos; e lá em casa o danado do cachorro era mesmo o suprassumo dos bichos. Quando dava cachorro na cabeça, e o pessoal não tinha jogado, era aquele alvoroço: “Ah, por que eu não joguei? Bem que eu sonhei com um danado de um cachorro”. Era cachorro pra lá, era cachorro pra cá... É claro que ninguém se lembrava do oposto, quando sonhava, jogava e dava outro bicho. Também havia um tal de “jogar por três dias seguidos”, sempre no horário da tarde, praticamente sagrado, e que valia para esses casos de visões em sonho. Enfim, um hábito tão arraigado desses só poderia dar margem para muitas crendices e simpatias. Minha mãe contava que era preciso ficar atenta aos sonhos, pois esses traziam mensagens importantes para se jogar no bicho, e eu confesso que, algumas vezes, eu pedia para que ela apostasse em algum bicho, baseado em sonho que eu havia tido na noite anterior. Mas coisa certeira mesmo para se jogar e ganhar no bicho era simpatia, mas simpatia das boas, daquelas que você veria, com seus próprios olhos, o bicho da cabeça do dia seguinte! Quando eu ouvi isso pela primeira vez, pensei como era possível as pessoas não ganharem repetidamente no bicho com algo tão certeiro! Esta simpatia, em especial, consistia em, à tardinha, preparar um bom cuscuz de milho. Aqui, esclareço para o leitor que não é da terra, que o cuscuz é um prato muito comum na região, feito rotineiramente no café da manhã ou jantar, à base de fubá de milho e geralmente servido com manteiga, ovo ou uma carne guisada cheia de molho, ou ainda charque ou carne de sol na graxa. Também é corriqueiro fazer este mesmo cuscuz doce e regado ao leite de coco, ou mais raramente um cuscuz de massa de mandioca levemente salgadinho. Esse tal cuscuz de milho devia ser colocado em um prato branco e virgem, levado até um ponto calmo do quintal e, às 18h em ponto, a pessoa deveria sentar-se ao longe e rezar a Salve-Rainha até o trecho “nos mostrai” por três vezes. Durante a reza, certamente o bicho, que daria na cabeça do dia seguinte, apareceria para comer o cuscuz. Eu achava essa simpatia fantástica, mas eu ficava mesmo imaginando fazê-la só para ver um elefante, um avestruz ou até um jacaré em meu quintal e, ainda por cima, comendo cuscuz. Que fabuloso seria! Apesar de acreditar nisso por um bom tempo de minha infância, eu nunca tentei fazer a tal simpatia, primeiro porque não havia prato virgem em casa, e comprar um prato novo, naquela época, não era tão fácil quanto hoje; e segundo porque minha mãe sempre dizia que não era bom brincar com essas coisas, que era preciso leva-las a sério, haja visto o causo da cabra. Eu perguntei que cabra era essa e, obviamente caro leitor, isso nos levará ao próximo causo.

segunda-feira, 6 de junho de 2016

O inacreditável caso da filha


Quando criança, na ocasião do casamento da filha mais velha de uma comadre de minha mãe (a mesma tia Tereza, do causo sobre “tá correndo bicho”), fomos eu e minha mãe ao Engenho Cajabussu. Naquela época, nos anos 90, o engenho não tinha luz elétrica e o transporte era feito por um ônibus, muito velho (Pense em um ônibus velho! Era muito pior!), que apenas saia do Cabo de Santo Agostinho aos sábados. Fora isso, ou ia-se com veículo particular, coisa que não tínhamos, ou de carona nos treminhões de cana, o que fizemos na volta para casa. O local era tão afastado, que quando os moradores avistavam um avião, bem alto no céu, isso, por si só, já era um grande evento. Naquela época, eu fiquei entusiasmada em visitar um lugar assim, onde se podia ver as luzes das estrelas claramente, sem interferência de qualquer tipo de iluminação da cidade, onde as pessoas não tinham tv, e onde as histórias, contadas em volta da luz do candeeiro, eram o entretenimento maior. Não vou ser hipócrita em dizer que gostaria de morar em um lugar assim, mas confesso que fiquei, na época, encantada com aquela experiência, sendo ela passageira. Quilômetros adentrando nos canaviais, além do centro do Cabo, e já bem próximo ao município de Jaboatão dos Guararapes, era lá que ficava aquela simpática vila, onde, na época, tia Tereza morava. Foram algumas as histórias que ouvi enquanto estava por lá, embora a maioria das pessoas estivesse muitíssimo ocupada com os preparativos do casamento. Porém, um causo, em especial, ficou bem marcado em minha mente, talvez porque eu tenha visto pessoalmente a protagonista de tão fantástica trama. Na manhã do casamento, eu caminhava com a filha mais nova de tia Tereza pela vila, quando uma menina de seus doze anos passou pela gente e nos cumprimentou. Foi então que a moça me contou, tentando ser muito discreta, que aquela menina se tratava da filha de uma vaca! Preste atenção, caro leitor, pois ela não xingava a garota, como comumente fazemos ao dizer que uma pessoa “É uma filha da vaca, mesmo!”. Ela me explicou que o pai da menina, quando mais jovem, tinha lá suas manias pervertidas, e buscava se aliviar em uma vaca, que era criada pela família em um pasto atrás da casa. Em um belo dia, a família notou que a vaca estava prenha, embora não houvesse qualquer touro pelo pasto nas últimas semanas. Eles esperaram pelo nascimento de um bezerro, porém tamanha foi a surpresa das pessoas ao perceber que, em vez de um animal, havia nascido uma criança humana. A menininha era, aparentemente, saudável e em nada lembrava a vaca de sua mãe, exceto por um grande sinal de pelo nas costas, igualzinho a uma malha da própria vaca. Os avós, tendo muita pena, resolveram criar aquela menina, que, no fundo, já desconfiavam que fosse fruto das sem-vergonhices do seu filho com a coitada da vaca. Naquela ocasião, em que a moça me contou tamanha fábula, ela ainda quis provar que não estava mentindo, e fez questão de chamar a menina, só para que ela se aproximasse e eu pudesse perceber a grande malha de pelo negro em suas costas. Insisto que a moça fez tudo isso com muita discrição, pois apesar das pessoas do povoado terem conhecimento sobre o causo, a menina nunca foi informada sobre o paradeiro de sua verdadeira mãe, nem que ela poderia estar ali, tão perto dela, bem atrás de sua casa, tranquila a comer seu capim.