quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Epílogo

Termino essa pequena coletânea de causos com a sensação de que muitas dessas histórias, especialmente as que envolvem entidades mágicas, têm se tornado cada vez mais raras. Muitos interpretam isso como uma evolução cultural da sociedade, uma demonstração de que nosso povo se tornou educado e já não acredita mais em assombração que sai do mato para correr como visagem, seja feito lobisomem, perna cabeluda ou uma alma zombeteira. Mas, caro leitor, eu não concordo muito com isso, não! E vou lhe explicar o porquê, daí você decide!

    Muito pelo contrário, eu enxergo tal comportamento como uma perda de identidade cultural e apreço pelas estórias encantadas do passado. Quem ainda sabe contar, muitas vezes reluta em fazê-lo quando solicitado, pois tem receio de ser zombado. Outros, mais jovens, simplesmente colocam na cabeça que a fábula da tv ou vídeo game é muito mais interessante do que a narrativa do seu avô. Mas, pensando bem, eu até entendo os mais novos: como ficar com medo da Comadre Fulozinha ou do Tôsseco, se nem existe mais mata decente perto de casa que ponha medo de topar com essas entidades? E quando há um fragmento de vegetação, medo mesmo é de topar com um sujeito de dois braços e duas pernas, não muito cabeludas, armado com pistola calibre, sei lá, quanto. Afinal, é só isso todo dia no noticiário!
E Ponte dos Carvalhos... ah, caro leitor! Esse bairro é há tempos famosíssimo nos jornais mais encarnados da região metropolitana do Recife. Até parece que o pai do mangue fez muito bem seu trabalho, protegendo o lado de lá do rio, onde condomínios de alto luxo residem na charmosa Reserva do Paiva, porém esqueceu-se mesmo foi do vilarejo com seus antigos pescadores, que vivem hoje em meio ao esgoto, lixo e violência, e que de tão acostumados, nem percebem mais. Perceber o quê mesmo? Ou vai ver que esse tal de pai do mangue é muito do esperto, e resolveu viver no lado chique do rio, onde, espero eu, o esgoto seja tratado. 
Talvez, caro leitor, eu esteja mesmo é sendo muito saudosista e revivendo uma memória que nunca foi tão bela assim. Afinal, quando se é criança, tudo tem lá seu encanto. Lembro-me do antigo trem a diesel, em seus últimos áureos anos, atravessando o mangue que margeava os rios Pirapama e Jaboatão, ainda bastante preservados. Recordo-me da antiga fábrica de zinco, em meio a um bananal, que eu julgava ser uma mata sem fim, onde hoje fica o bastante deteriorado Parque dos eucaliptos. Por que não falar da última grande floresta de restinga do nosso estado, da qual quase nada sobrou, nas terras da antiga e polêmica fábrica de pólvora em Pontezinha (cujo último acidente rendeu histórias assombrosas demais para contar). O engenho Bela Vista, com seu casarão já muito desgastado, de onde se avistavam os coqueirais da outrora deserta praia do Paiva. Os campos de capim com flores cor de rosa, a balançar ao vento, e que logo terminavam em um caminho cheio de xiés, correndo para suas tocas na beira do manguezal. A igrejinha de Santo Antônio do monte, datada do período colonial, que agora se vê ameaçada por grandes empreendimentos que derrubam os morros, vendem a terra e os terrenos já aplanados.
Pois é, muito mudou, o progresso chegou por essas bandas, com grandes galpões de indústrias ligadas ao crescimento do porto de Suape e da instalação da refinaria Abreu e Lima. Porém, entristece mesmo o coração ver que foi um progresso desordenado, sem muito planejamento, sabe? Sem quaisquer preocupações com consequências para a urbanização local, qualidade de vida das pessoas e preservação do meio ambiente. Muito dinheiro foi injetado na economia local, e ao caminhar pelas ruas do antigo bairro onde cresci, vejo que muitas delas finalmente foram calçadas e há saneamento, após algumas décadas de descaso. Muitos moradores já não têm mais jardins e quintais. Algumas casas são contínuas com os muros e não faltam construções improvisadas. A linha do trem é margeada por mucambos, que muito me fazem lembrar a já decadente Macondo. O esgoto de muitas casas ainda segue direto para os riachos e para o mangue. O lixo transborda e parece proliferar sozinho, dia após dia. Próximo à estação de trem são muitos os bois, cabras, cavalos, gatos e cachorros que se alimentam do lixo exposto a céu aberto, enquanto do lado oposto da rua vê-se casebres com esgoto a céu aberto e pessoas lavando seus carros recém-adquiridos, pois esses sim merecem ficar limpos. Os carros brigam com os transeuntes, e não é raro ouvir dos moradores que os carros sobem nas calçadas e os pedestres é que caminham nas próprias ruas. Espaços públicos de convivência são poucos, mas quando reformados ou construídos, costumam ser depredados em menos de um ano. O som alto impera, seja nos carros ou nas casas, e é praticamente impossível praticar o sossego, ler um livro ou mesmo ouvir sua própria música (em baixo volume) no final de semana. O antigo trem a diesel foi substituído pelo VLT – veículo leve sobre trilhos – antiga promessa de oferecer um transporte rápido ligando a cidade do Cabo à linha sul do metrô de Recife. O trem é muito moderno e bastante rápido, mas os intervalos entre as viagens são inimagináveis. Vou me abster de detalhar sobre a falta de funcionários nas estações, do pouco cuidado com o trem por parte dos usuários e, inclusive, do drible ao pagamento da passagem para embarcar na estação do bairro. Caro leitor, aqui eu o convido para refletir se eu estaria equivocada ou há algo de muito errado nisso tudo? Se a máquina pública estivesse, de fato, engajada em educar sua população com conhecimento básico e de boa qualidade a todos, excluindo-se todos os discursos e balelas de tom político-partidário, estaríamos assim? Não desejo me estender nesta discussão, pois, afinal esta é uma obra de relatos de assombro/fantasia, e você, caro leitor, deve ter vindo em busca disso. No entanto, é triste perceber que a realidade do bairro, que foi cenário da maioria dos causos retratados aqui, é bem mais assombrosa do que todas as histórias de assombração.
Finalmente, é preciso deixar claro que essas histórias são de uma época que ficou para trás, com memórias de um local que talvez só tenha existido em minha mente infanto-juvenil. E, como eu dizia inicialmente, as localidades, antes rurais, se tornaram cada vez mais urbanas, distanciando-se dos pensamentos irracionais envolvendo o medo de fantasmas endêmicos e entidades presepeiras. Os mangues e matas, no entorno das comunidades, têm sido constantemente destruídos. As pessoas já não criam mais animais, nem cultivam em seus quintais. Criaturas ao exemplo da Comadre Fulozinha, Pai do Mangue, Tôsseco, entre outros, perderam espaço para a civilização, para os criminosos de plantão. As crendices populares já não são mais tão fortes, e as crianças não acreditam tão facilmente nesses causos. Se isso é bom ou ruim, sinceramente não sei. Afinal, o bairro onde cresci progrediu muito nos últimos anos, de um antigo engenho de cana de açúcar, passou para um loteamento sem saneamento, até um movimentado e vizinho bairro, porém isolado, da europeizada reserva do Paiva, e a poucos minutos da tão falada Refinaria Abreu e Lima. Mas isso, caro leitor, são outros causos que o tempo há de reunir para outro alguém contar.

O lobisomem no jardim

Caro leitor, esta é, talvez, a história mais assustadora que conto aqui neste livro. Não a considero mais horripilante por seu enredo em si, mas porque fui a protagonista dessa história, juntamente com minha mãe, e posso atestar sua veracidade.

Era um domingo do mês de janeiro de 2001, e ainda me recordo com riqueza de detalhes. Eu havia sido aprovada no vestibular da UFPE, e em março começariam as aulas; mas, por enquanto, estava mesmo curtindo o descanso das tão merecidas férias, após seis meses de árduo estudo. Minha mãe, aos domingos, costumava assistir ao programa do Silvio Santos noite adentro. Eu, ainda frequentava a igreja católica, da qual fazia parte do antigo grupo do coral; e depois da missa, que se estendia até pouco mais que nove da noite, costumava voltar para casa. Ou seja, por volta das dez eu já estava em casa e aproveitava para assistir ao programa do Silvio junto com minha mãe. Naquela época, tv a cabo era artigo de luxo, e para falar a verdade, eu acho que nem devia chegar tal recurso em Ponte dos Carvalhos. Assistir tv aberta era o padrão no bairro, e domingão com Silvio, geralmente, era a melhor entre as péssimas opções disponíveis. 

Era uma noite de domingo tranquila, nada de lua cheia, o céu estava aberto, tudo normal. No dia seguinte, tampouco haveria algo especial, que pudesse nos perturbar ou gerar qualquer ansiedade. Enfim, mais do mesmo... Depois das onze da noite, findado o programa na tv, começamos a nos preparar para dormir. Como, naquela época, meu pai ainda estava separado de minha mãe, costumávamos dormir no mesmo quarto para fazer companhia uma à outra, caso ocorresse algum incidente à noite. Nosso bairro, já fazia algum tempo, não era tão tranquilo e, na verdade, frequentemente virava notícia nos programas policiais locais. Nem preciso explicar que as notícias eram (e ainda são) escolhidas a dedo para chocar o máximo possível dos espectadores desses programas. Mas, apesar disso, até aquela data, nenhum incidente havia ocorrido na nossa casa. Geralmente dormíamos sossegadas, porém vigilantes. 

Nesta fatídica noite, eu adormeci muito rapidamente e, mal havia caído no sono, quando minha mãe me sacudiu falando baixinho: “Escuta, escuta!”. No primeiro momento (sabe quando alguém te acorda de um sono pesado num solavanco?), eu pensei: “Que raios ela quer que eu escute? Aposto que não é nada!”. Mas isso não durou nem três segundos e, eu escutei. Bem ao longe, como se viesse da esquina da nossa rua, algo como um uivo medonho. Não parecia cachorro, pelo menos nenhum que eu já tivesse ouvido durante minhas dezoito primaveras. Mas, de qualquer forma, eu preferi pensar que era um cachorro, e me tranquilizei. Foi então que ouvi outro uivo, ainda mais violento. Caro leitor, para você ter ideia do som, na verdade não se parecia com um uivo de cão, mas sim com o som grave de uma horripilante criatura de cinema. Minha mãe se refere aquele som como um verdadeiro urro, e eu até hoje não sei identificar quão sinistra seria a criatura, vivente na terra, capaz de expulsar de suas entranhas tão grotesco ruído. Este segundo urro parecia mais próximo da nossa casa, tão próximo que denunciava que aquela criatura estava mesmo bem em frente ao nosso portão. 

Preciso abrir aqui um parêntesis e esclarecer, principalmente ao leitor que vem fazendo uma leitura linear dessas histórias em ordem cronológica, que nossa casa sempre teve um muro pequeno e relativamente fácil de subir ou pular, assim como o portão igualmente baixo. Porém, exatamente naquele mês, minha tia Ana, que sempre morou em uma casa geminada ao lado da nossa, havia contratado um pedreiro, vizinho nosso, para elevar o muro de nossas casas e colocar dois novos portões bem mais altos. Naquela última semana, os muros estavam completamente terminados e os portões instalados, inclusive com fechaduras. Isso significava que para alcançar nosso jardim, alguém teria que usar uma escada bastante alta. 

Mas, voltando à fatídica madrugada, pois já devia ser uma da manhã da segunda-feira, não demorou mais que uns dez segundos para ouvir o terceiro urro horrendo da criatura. Desta vez, o som parecia vir do nosso terraço da frente, bem ao lado do quarto onde dormíamos. Ao ouvi-lo, tudo que eu pensei naquele momento foi “É somente um sonho, volte a dormir que vai acabar, volte a dormir!”. Instantaneamente eu baixei minha cabeça, ainda meio sonolenta e tentei ficar quietinha, sem mexer um músculo sequer. Foi então que minha mãe, com aquele jeito pernambucano dela, não se conteve e já foi falando alto mesmo: Essa menina ... a gente acorda ela para ajudar, e ela volta a dormir!”. Naquele instante, eu pensei: “Lascou-se tudo! É agora que esse bicho vai pular na nossa janela (um basculante, que estava quebrado e facilmente se abria) e sabe-se lá mais o quê”. Mas, surpreendentemente, tudo se acalmou; nada mais fez barulho, e eu e minha mãe ficamos quietinhas, caladas e quase paralisadas até adormecermos. 

No dia seguinte, ao acordar, fiquei alguns minutos na cama, tentando decifrar se todo aquele acontecimento não havia passado de um pesadelo. Quando eu vi que minha mãe já estava de pé na cozinha, eu levantei ainda meio amedrontada, e fui até ela. Logo percebi que ela ainda não havia aberto as janelas da frente da casa, e foi então que perguntei: “Mainha, aquilo foi um sonho, né?”, na esperança de que ela perguntasse sobre o que diabos eu estava falando. Mas logo veio sua resposta: “Não foi não! Eu ainda nem tive coragem de olhar lá fora, e estava mesmo te esperando para fazer isso”. Ainda bastante amedrontadas com o que poderíamos encontrar lá fora, criamos alguma coragem para abrir a porta, somente depois de ouvir que pessoas já caminhavam e conversavam na rua. 

Ao abrirmos a porta, veio outra surpresa: todos os sacos do lixo, recém organizados, estavam rasgados e remexidos, as plantas do jardim completamente arrancadas, um forte cheiro de animal (similar ao de um cachorro rabugento que não se banhava há anos) pairava sobre o jardim; e, o que mais me assustou, um andaime da obra recém-finalizada, que estava bem em frente à nossa janela, tinha sido empurrado juntamente com um grande jarro de planta da minha mãe. 

Pensando mais friamente depois de alguns anos, talvez todos esses detalhes tenham sido meras coincidências, que já estavam lá na noite anterior, mas que somente percebemos e, depois do fenômeno, associamos ao acontecimento da madrugada. Mas, de qualquer forma, tudo aquilo nos deixou ainda mais assustadas e com uma certeza ainda maior de que aquele som veio de uma criatura real e tenebrosa. 

Finalmente, fomos conversar com minha tia, nossa vizinha da casa geminada e, para nossa mais completa surpresa, ela não ouviu nada! Mas, como ela costumava ter um sono pesado, talvez fosse normal que ela não tivesse escutado qualquer coisa. Minha mãe tentou sondar outros vizinhos, e novamente ninguém escutou qualquer coisa estranha na última madrugada! Absolutamente nada. Mesmo as pessoas que se diziam acordadas naquele horário não escutaram nada, nem mesmo um latido de cachorro estranho, uns gatos bisonhos a procura de companheiras, nada, nada, nada. Aí ficamos ainda mais encucadas, pois qual seria a explicação para tamanha assombração?

Alguns dias depois, um de nossos vizinhos, justamente o mesmo pedreiro da obra do muro, ao saber do ocorrido, nos disse que por volta da meia noite daquele domingo ele foi até o jardim de sua casa para fumar um cigarro, e que de lá avistou um filhote de jumento, deitado sob um pau-brasil que havia em frente à casa da minha tia. Até aí, nada anormal, pois já havia alguns meses que um jumentinho ficava por ali mesmo. Ninguém sabia muito bem de quem era, mas provavelmente era de um senhor que criava uns cavalos na quadra após nossa rua. 

Nunca saberemos se esse jumento teve relação com o fenômeno que escutamos e tanto nos assombrou, ou se o que escutamos foi o responsável pelo furdunço no nosso jardim, mas posso atestar, certamente, que aquilo foi a coisa mais pavorosa que já ouvi em toda a vida, e que, se naquela noite eu estivesse sozinha, ainda relutaria em acreditar em mim mesma.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Tá correndo bicho: o chupa galinhas

Em meados dos anos noventa, a mídia relatava com certa regularidade histórias sobre uma estranha criatura, que atacava criações de cabras e vacas no Brasil e outros países da América Latina. Segundo os relatos, a misteriosa criatura assaltava os animais chupando todo seu sangue, e deixava apenas pequenos orifícios, similares a lesões feitas com um laser. Apesar do ataque, nenhum sinal de sangue era encontrado no animal ou fora dele, deixando claro que não se tratava de um predador conhecido pelo homem. Por isso, logo esse possível monstro recebeu o nome genérico de chupa-cabras e, ainda hoje, volta e meia a mídia divulga algum caso muito semelhante envolvendo terrível criatura.
        Era final da década de noventa, não me recordo o ano exato, quando algo sinistro aconteceu na nossa vizinhança, mais exatamente na casa quase em frente a nossa. Em uma manhã de terça-feira, a vizinha começou a contar desesperadamente para todos vizinhos, que por ventura aparecessem na rua, sobre um acontecimento macabro em seu quintal. Segundo ela, já muito tarde da noite anterior, ouviu um ruído de galinhas em completo desespero, vindo do galinheiro que mantinha atrás de sua casa. Ela achou a movimentação estranha, pois o galinheiro sempre dormia fechado com cadeado, a fim de impedir o roubo dos animais, e mesmo a entrada de possíveis predadores, como o simpático timbu (esclareço ao leitor, não pernambucano, que timbu trata-se de uma espécie de gambá, Didelphis albiventris). Logo, essa vizinha abriu a porta da cozinha e foi verificar que tamanha gritaria era aquela em seu galinheiro. Foi então que, nas palavras dela, essa vizinha viu, a menos de três metros, um bicho dificilmente desse mundo, meio parecido com um leão grande e branco. O bicho havia derrubado a porta do galinheiro, já havia atacado e matado algumas galinhas, mas, com a aproximação da mulher, ele saiu do galinheiro e ficou parado, em meio a um mato alto, no fundo do terreno, a lhe observar com olhos grandes e vermelhos. Ainda segundo seu relato, a vizinha jogou uma pedra no bicho, fazendo com que seus pelos ficassem ainda mais eriçados. O bicho, que não parecia intimidado, rosnou alto e forte para a mulher, que também não se intimidou com aquele felino albino do além, voltando a procurar uma pedra no chão, dessa vez ainda maior, e a jogá-la novamente contra o bicho que, dessa vez, correu para bem longe em grande desespero.
        Naquela manhã, ao relatar a história, a vizinha aproveitava para mostrar aos curiosos os corpos mortos de suas galinhas, com dois orifícios no pescoço ou peito, e sem qualquer vestígio de sangue. Tamanha foi a repercussão da história no bairro e municípios vizinhos, que duas equipes de reportagem foram até o local entrevistá-la, em busca de informações sobre o suposto chupa galinhas, um possível primo do já famoso chupa cabras das Antilhas. Depois desse episódio, ocorreram mais alguns relatos de supostos avistamentos do mesmo bicho, perambulando pelo bairro. E ainda houve outro vizinho, de uma casa da esquina, que disse ter ficado de tocaia por várias noites seguidas, tendo atirado e sangrado a criatura, que sumiu no mato e nunca mais foi vista.

Alguns meses se passaram até que, na mesma casa do acontecido, dessa vez a nora desta vizinha, disse ter acordado de madrugada ouvindo os cachorros latindo e acuando alguma coisa na rua. Ela olhou pela brechinha da janela e, tamanha foi sua surpresa, ao perceber que havia um animal parecido com um cachorro grande, porém repleto de grandes espinhos. Ele confrontava os cachorros, que pareciam temê-lo, embora continuassem a latir. Ela fechou a fresta da janela e ficou quieta até que os cachorros se acalmaram e, o bicho, provavelmente foi embora. Desde então, o relatos sobre essa possível criatura, que vagava à noite nas ruas do bairro, não foram mais ouvidos. 
--->> Veja AQUI depoimento da vizinha!

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Tá correndo bicho: causos de engenho

Havia muitas histórias (ou estórias) de bichos que corriam, tarde da noite, nos engenhos pernambucanos, afastados das luzes das cidades. Esses bichos botavam tanto pavor nos moradores que as pessoas mudavam seus hábitos e horários para evitar um possível encontro com um chupador de sangue, meio homem meio bicho, cuja natureza era demasiadamente medonha e sinistra. Essa história é sobre uma tia avó minha, que morava no Engenho Campo Alegre, e que tendo que visitar sua sogra, minha bisavó Dona Donzinha, no município de Escada, tinha que caminhar cerca de dez horas, em estradas margeadas por canaviais e, às vezes, pequenos vilarejos até chegar em seu destino. Essa distância não espanta, visto que, no passado, era costume rotineiro pessoas realizarem longas caminhadas, que duravam até dias inteiros, para visitar familiares em outros municípios vizinhos. Após visitar sua sogra, normalmente essa minha tia saia bem cedo na manhã seguinte, o que lhe garantia chegar a Campo Alegre ainda à tardinha. No entanto, em certa ocasião, ela se descuidou da hora e deixou a casa de minha bisavó somente ao meio dia. Apesar de estar receosa com o andar das horas, ela queria mesmo retornar para sua casa. Deixou de lado sua apreensão, embora soubesse que, mesmo a passos largos, só chegaria em casa após dez horas da noite. Naquela época não havia tanta violência e minha tia, diga-se de passagem bastante corajosa, não teria tido seu coração afligido, se não fosse pela tenebrosa notícia sobre um bicho que andava atacando animais nos engenhos ao longo de seu caminho. A estrada era de terra e parecia se estender infinitamente por entre canaviais, matas fechadas e raros vilarejos. Já havia escurecido e passava das onze horas da noite, mas faltava ainda mais de uma hora de caminhada até sua casa, que ficava em um sítio bem afastado do engenho. Apesar do medo, a noite estava bastante iluminada pela lua e nenhuma criatura havia lhe cruzado o caminho, quando, ao subir um morro, ela percebeu um vulto escuro e muito grande se locomovendo logo abaixo. Nesse instante, seu coração disparou completamente, pois ela sabia que só havia cana de açúcar em sua volta e, seja qual direção tomasse, ela ainda estava a mais de uma hora de qualquer alma viva. Ela criou coragem e reduziu seu caminhar, esperando que aquela criatura desaparecesse ao longe, no meio do breu. Quando não mais viu qualquer sinal de criatura, apertou o passo e, finalmente ao chegar em casa, encontrou seu marido que a recebeu desesperado, relatando que não fazia nem meia hora que o tal bicho, que corria por aquelas bandas, acabara de passar urrando alto, muito perto de sua casa.

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

O astronauta no portão

Esta história certamente é a mais bizarra e inesperada entre todas as relatadas aqui, não por sua natureza em si “estranha”, visto que as outras também o são, e até muito mais, mas por tratar-se de uma visão sem igual em toda a História (creio eu, em minha humilde imaginação). Por volta do final dos anos 90, a maioria das crianças, que antes enchiam de brincadeiras a rua lá de casa, já havia crescido. Embora eu não brincasse na rua, era sempre costume fazer alguma zoeira em casa, fosse com meus primos ou com os filhos da comadre da minha mãe. Em uma dessas noites, logo após o jantar, lembro que conversavam no quarto da minha tia, a própria, minha mãe e sua comadre, enquanto eu e a afilhada de minha mãe brincávamos na sala. Não lembro bem em que consistia a brincadeira, mas acho que não era nada elaborado, simplesmente estávamos jogando almofadas umas nas outras. Foi quando, de repente, essa menina encostou-se à parede, pálida e olhando para mim. Eu, já assustada, perguntei o que ela havia visto e, para minha surpresa, ela respondeu que avistara um astronauta no portão. Aqui, caro leitor, preciso esclarecer que as casas de minha mãe e tia são geminadas e, naquela época, possuíam um muro baixinho com portão em grade metálica, o que permitia ver claramente toda a rua. Como a porta da sala possuía basculantes, qualquer pessoa de dentro da sala veria facilmente alguém na rua. A menina estava visivelmente paralisada, repetindo que ele ainda estava lá fora. Naquela ocasião, pega tão de surpresa, eu não quis pagar para ver, então nos abaixamos e saímos engatinhando até o quarto para, então, contar o ocorrido às nossas mães. Nem preciso dizer que ninguém acreditou naquele fato para lá de inusitado; se ainda fosse um fantasma, mas um astronauta? Depois de alguns minutos, conseguimos, ao menos, convencer nossas mães de que estávamos bastante assustadas. Fomos todas para a sala, mas como já era esperado, não havia uma viva alma no portão. Os únicos detalhes a mais que a menina conseguiu relatar, depois do ocorrido, foi que aquele astronauta – ela o definiu assim, pois estava todo de branco e com um capacete também branco similar ao de um astronauta – tinha estatura pequena, similar a uma criança de oito ou dez anos, e segurava as grades do portão com as mãos, como se estivesse curioso em ver o que havia dentro da casa. Até hoje, não tenho explicação para aquilo. Alguém fantasiado, tentando pregar uma peça; quanto investimento para mais ninguém na rua ter visto aquilo também? Uma visão deslocada que a menina achou ter enxergado, no meio daquela brincadeira de almofadas? Ou realmente teria sido algo insólito? Vai saber...

sábado, 6 de agosto de 2016

Papai Noel

A meninada da nossa vizinhança sempre brincou na rua, mas era somente durante as festas de São João, Natal e Ano Novo que nossas mães nos permitiam ficar até altas horas da noite brincando e conversando em frente de casa (naquela época, anos 80/90, o bairro ainda era tranquilo). À medida que fomos crescendo, as conversas se tornaram mais comuns e as brincadeiras como roda, academia, pique esconde, pique pega, barra bandeira e queimada foram se tornando cada vez mais raras. Em uma noite de véspera de Natal, não me recordo o ano, eu lembro que estávamos sentados em cinco amigos sobre um tronco de coqueiro, que servia de banco, na frente da casa de uma amiga vizinha. A faixa etária do grupo devia variar de dez até 16 anos, e estávamos um pouco desanimados com aquela noite de Natal, talvez porque a situação financeira não fosse boa para nenhuma das famílias ou porque já não enxergávamos mais o encanto infantil do Natal.  Foi quando aconteceu algo realmente fantástico. Uma amiga começou a observar o céu e logo comentou com os demais: “Gente, olha aquela nuvem como é igualzinha ao Papai Noel!” Nesse momento, olhamos para o céu e estava lá, enorme, branca e solitária, uma nuvem que formava, sem nenhuma falha: um trenó com um saco enorme, o papai Noel e duas renas à frente. Era uma visão quase que inacreditável. Imediatamente ficamos todos em silêncio, e com lágrimas nos olhos admiramos aquela visão no céu, que deve ter durado uns cinco minutos, até começar a se desfazer lentamente. Tivemos a certeza de que aquela noite de Natal foi realmente mágica. Embora sem grandes brincadeiras ou presentes, estávamos ali reunidos, contemplando algo que vimos e que tínhamos a certeza de que não era abstrato. Porém, tratava-se de algo que ninguém mais veria, pois logo a nuvem se desfez, sem dar chance para chamarmos algum adulto que pudesse constatar aquele Papai Noel branco e fofo, igual a algodão pairando no céu.   

segunda-feira, 25 de julho de 2016

O túmulo do pastor

Essa história é bem conhecida entre os habitantes mais antigos do Cabo de Santo Agostinho. Há alguns anos, houve um pastor evangélico na cidade que estava mais para representante do "você sabe quem" do que de Deus. Tal pastor tirava vantagem de sua posição de sacerdote para extorquir dinheiro dos fiéis, possuir suas seguidoras e outras tantas atrocidades chocantes para, um assim dizer, representante do divino. O homem aprontou tanto na terra, que mesmo depois de morto continuou aterrorizando os vivos. Seu túmulo, situado no cemitério do Cabo, segundo contam moradores, já virou até ponto turístico, pois se trata do único túmulo daquele cemitério que é completamente amarrado com correntes muito grossas e cadeados fortes. Além disso, é necessário fazer constantes reparos no túmulo, pois ele frequentemente apresenta rachaduras profundas, como se algo realmente desejasse sair dali de dentro. Os mais antigos contam uma lenda sobre um monstro que sairá daquele túmulo, durante os dias do juízo final, para levar consigo todos aqueles que cometeram inúmeros pecados e nunca se arrependeram. Há vizinhos que juram, de pés juntos, que o túmulo existe mesmo no cemitério principal do Cabo de Santo Agostinho, e que já o viram pessoalmente, todo rachado e amarrado com correntes. As pessoas sempre se perguntam: “Por que um túmulo estaria rachado e amarrado com correntes, a menos que quisessem evitar a saída de alguma coisa dali de dentro?” Talvez a resposta só venha mesmo a tona no dia do derradeiro Juízo!

sexta-feira, 8 de julho de 2016

O pacto para ganhar no bicho


Minha mãe conta que há inúmeras formas de se ganhar no jogo do bicho, algumas mais bobas como refletir sobre seu sonho da noite anterior, outras envolvendo rezas antes de dormir, pedindo para que o bicho se mostrasse em sonho, ou mesmo a famosa simpatia do cuscuz. Mas algumas formas eram realmente sinistras e ainda mais certeiras no alcance do objetivo. E como tudo nessa vida é feito de escolhas, fazer um pacto para ganhar no jogo do bicho significaria vender sua alma a você sabe quem, não é mesmo? Pois ela contava que dois moços, cansados da pobreza, em um belo dia resolveram fazer um pacto para ganhar no jogo do bicho e resolver para sempre essa vida de pindaíba e de cuscuz puro ou com ovo. Eles se organizaram por dias antes da noite prevista para a realização da grandiosa cerimônia. Quando se aproximava da meia-noite, os dois se dirigiram para uma encruzilhada bem afastada do centro da cidade, procuraram um poste, e um dos rapazes foi amarrado a esse poste pelo seu outro colega. Talvez, caro leitor, você esteja se perguntando por que amarrar um dos moços, como eu perguntei à minha mãe na época em que ela me contou esse causo: fazia parte da cerimônia, e eles simplesmente estavam seguindo todos os passos minuciosamente descritos naquele livrinho de rituais. Parece que na ocasião não houve um consenso para saber quem seria amarrado ao poste, mas depois de muita discussão, eles tiraram no par ou ímpar e resolveram quem seria o sortudo a ficar preso à encruzilhada. Então os rapazes esperaram até que batesse a meia noite e o moço que não estava amarrado começou a ler alguma espécie de oração para invocar você sabe quem. Após a terceira leitura da oração, uma ventania surgiu repentinamente, balançando com avidez as folhas das árvores e até o poste onde um dos rapazes estava amarrado. O outro rapaz, morto de medo, não pensou duas vezes e saiu em disparada, deixando o amigo para trás. O moço amarrado, também se borrava de medo, mas não podia fazer nada naquela situação, senão esperar para ver o que aconteceria. Foi então, que do meio da ventania surgiu uma mulher, isso mesmo, uma entidade chamada de Maria Padilha, esposa de você sabe quem. Essa mulher se aproximou do rapaz amarrado e lhe perguntou, meio que aborrecida, o que você quer? O rapaz, já cagado de medo, literalmente, desconversou e disse que não queria nada não; que ele havia se arrependido e que ela poderia ir embora. A mulher, ainda mais aborrecida, lançou um longo olhar de raiva para o rapaz, tal qual alguém que faz uma longa viagem para nada, sacudiu sua saia vermelha e saiu xingando: “Xô cabra! Xô cabra! Xô cabra!”. Mal havia amanhecido o dia, o outro amigo voltou para desamarrar o companheiro, que certamente esbravejou aos montes devido à tamanha covardia de seu suposto amigo. Baixados os ânimos, eles conversaram sobre o ocorrido e o amigo disse que desistiu do pacto, não fez nenhum acordo, e que a mulher saiu xingando ele, e só! Pois e não é que deu cabra, na cabeça, por três dias consecutivos! Como os amigos não entenderam o recado, eles perderam a chance de ganhar no bicho. Mas minha mãe diz que foi melhor assim, afinal, se eles tivessem ganhado seria por intermédio do próprio capiroto, e suas almas seriam aprisionadas em troca do pagamento pela fortuna adquirida.

quarta-feira, 15 de junho de 2016

Simpatia para ganhar no bicho


O jogo do bicho sempre foi algo rotineiro na vida dos pernambucanos. Nas décadas de 70, 80 e 90, ganhar no bicho era praticamente a única esperança de melhorar de vida para muitos indivíduos. Afinal, podia-se ter várias tentativas para ganhar no bicho, fosse na corrida da tarde, às 16h, ou à noite, às 19h (depois inventaram o horário do meio dia e, mais recentemente, soube que há inúmeros horários diferentes, o que para mim não tem a mesma magia); na cabeça ou no quinto, milhar, centena ou dezena, ou ainda o grupo. Sem contar aqueles 25 bichos coloridos, que podiam aparecer em sonho ou mesmo dentro de casa para dar o sinal, certeiro, do prêmio!!! Além disso, todo mundo conhecia alguém que já tivesse ganhado um troquinho no jogo do bicho, diferente das nacionalmente famosas Loto, Sena, Baú, entre outras premiações. Enfim, jogar no jogo do bicho era praticamente sagrado para muita gente. Era costume, lá no bairro, que as pessoas já tivessem seus números favoritos; e lá em casa o danado do cachorro era mesmo o suprassumo dos bichos. Quando dava cachorro na cabeça, e o pessoal não tinha jogado, era aquele alvoroço: “Ah, por que eu não joguei? Bem que eu sonhei com um danado de um cachorro”. Era cachorro pra lá, era cachorro pra cá... É claro que ninguém se lembrava do oposto, quando sonhava, jogava e dava outro bicho. Também havia um tal de “jogar por três dias seguidos”, sempre no horário da tarde, praticamente sagrado, e que valia para esses casos de visões em sonho. Enfim, um hábito tão arraigado desses só poderia dar margem para muitas crendices e simpatias. Minha mãe contava que era preciso ficar atenta aos sonhos, pois esses traziam mensagens importantes para se jogar no bicho, e eu confesso que, algumas vezes, eu pedia para que ela apostasse em algum bicho, baseado em sonho que eu havia tido na noite anterior. Mas coisa certeira mesmo para se jogar e ganhar no bicho era simpatia, mas simpatia das boas, daquelas que você veria, com seus próprios olhos, o bicho da cabeça do dia seguinte! Quando eu ouvi isso pela primeira vez, pensei como era possível as pessoas não ganharem repetidamente no bicho com algo tão certeiro! Esta simpatia, em especial, consistia em, à tardinha, preparar um bom cuscuz de milho. Aqui, esclareço para o leitor que não é da terra, que o cuscuz é um prato muito comum na região, feito rotineiramente no café da manhã ou jantar, à base de fubá de milho e geralmente servido com manteiga, ovo ou uma carne guisada cheia de molho, ou ainda charque ou carne de sol na graxa. Também é corriqueiro fazer este mesmo cuscuz doce e regado ao leite de coco, ou mais raramente um cuscuz de massa de mandioca levemente salgadinho. Esse tal cuscuz de milho devia ser colocado em um prato branco e virgem, levado até um ponto calmo do quintal e, às 18h em ponto, a pessoa deveria sentar-se ao longe e rezar a Salve-Rainha até o trecho “nos mostrai” por três vezes. Durante a reza, certamente o bicho, que daria na cabeça do dia seguinte, apareceria para comer o cuscuz. Eu achava essa simpatia fantástica, mas eu ficava mesmo imaginando fazê-la só para ver um elefante, um avestruz ou até um jacaré em meu quintal e, ainda por cima, comendo cuscuz. Que fabuloso seria! Apesar de acreditar nisso por um bom tempo de minha infância, eu nunca tentei fazer a tal simpatia, primeiro porque não havia prato virgem em casa, e comprar um prato novo, naquela época, não era tão fácil quanto hoje; e segundo porque minha mãe sempre dizia que não era bom brincar com essas coisas, que era preciso leva-las a sério, haja visto o causo da cabra. Eu perguntei que cabra era essa e, obviamente caro leitor, isso nos levará ao próximo causo.

segunda-feira, 6 de junho de 2016

O inacreditável caso da filha


Quando criança, na ocasião do casamento da filha mais velha de uma comadre de minha mãe (a mesma tia Tereza, do causo sobre “tá correndo bicho”), fomos eu e minha mãe ao Engenho Cajabussu. Naquela época, nos anos 90, o engenho não tinha luz elétrica e o transporte era feito por um ônibus, muito velho (Pense em um ônibus velho! Era muito pior!), que apenas saia do Cabo de Santo Agostinho aos sábados. Fora isso, ou ia-se com veículo particular, coisa que não tínhamos, ou de carona nos treminhões de cana, o que fizemos na volta para casa. O local era tão afastado, que quando os moradores avistavam um avião, bem alto no céu, isso, por si só, já era um grande evento. Naquela época, eu fiquei entusiasmada em visitar um lugar assim, onde se podia ver as luzes das estrelas claramente, sem interferência de qualquer tipo de iluminação da cidade, onde as pessoas não tinham tv, e onde as histórias, contadas em volta da luz do candeeiro, eram o entretenimento maior. Não vou ser hipócrita em dizer que gostaria de morar em um lugar assim, mas confesso que fiquei, na época, encantada com aquela experiência, sendo ela passageira. Quilômetros adentrando nos canaviais, além do centro do Cabo, e já bem próximo ao município de Jaboatão dos Guararapes, era lá que ficava aquela simpática vila, onde, na época, tia Tereza morava. Foram algumas as histórias que ouvi enquanto estava por lá, embora a maioria das pessoas estivesse muitíssimo ocupada com os preparativos do casamento. Porém, um causo, em especial, ficou bem marcado em minha mente, talvez porque eu tenha visto pessoalmente a protagonista de tão fantástica trama. Na manhã do casamento, eu caminhava com a filha mais nova de tia Tereza pela vila, quando uma menina de seus doze anos passou pela gente e nos cumprimentou. Foi então que a moça me contou, tentando ser muito discreta, que aquela menina se tratava da filha de uma vaca! Preste atenção, caro leitor, pois ela não xingava a garota, como comumente fazemos ao dizer que uma pessoa “É uma filha da vaca, mesmo!”. Ela me explicou que o pai da menina, quando mais jovem, tinha lá suas manias pervertidas, e buscava se aliviar em uma vaca, que era criada pela família em um pasto atrás da casa. Em um belo dia, a família notou que a vaca estava prenha, embora não houvesse qualquer touro pelo pasto nas últimas semanas. Eles esperaram pelo nascimento de um bezerro, porém tamanha foi a surpresa das pessoas ao perceber que, em vez de um animal, havia nascido uma criança humana. A menininha era, aparentemente, saudável e em nada lembrava a vaca de sua mãe, exceto por um grande sinal de pelo nas costas, igualzinho a uma malha da própria vaca. Os avós, tendo muita pena, resolveram criar aquela menina, que, no fundo, já desconfiavam que fosse fruto das sem-vergonhices do seu filho com a coitada da vaca. Naquela ocasião, em que a moça me contou tamanha fábula, ela ainda quis provar que não estava mentindo, e fez questão de chamar a menina, só para que ela se aproximasse e eu pudesse perceber a grande malha de pelo negro em suas costas. Insisto que a moça fez tudo isso com muita discrição, pois apesar das pessoas do povoado terem conhecimento sobre o causo, a menina nunca foi informada sobre o paradeiro de sua verdadeira mãe, nem que ela poderia estar ali, tão perto dela, bem atrás de sua casa, tranquila a comer seu capim.

domingo, 22 de maio de 2016

O homem de preto

Quando criança, até meus sete anos, eu não tinha o costume de brincar na rua todos os dias à noite, o que viria somente a se tornar um hábito já no final de minha infância; mas, em vez disso, era comum que eu passasse minhas tardes estudando e depois assistindo à tv, e, no comecinho da noite após o banho, jantava e esperava meu pai e minha tia voltarem do trabalho. Geralmente, eu ficarava a postos, só esperando o barulho do trinco do portão se abrindo, para me esconder em qualquer cômodo da casa, em baixo da cama, dentro do guarda-roupa, atrás da porta ou do sofá, ou mesmo dentro de um móvel semelhante a baú, que havia lá em casa. A brincadeira era boba e consistia em meu pai ou minha tia, quem chegasse primeiro, me procurar pela casa. Acho que isso não durou tanto tempo assim, mas tenho uma boa recordação dessa época e dessas brincadeiras. Em uma certa noite, quando esperava por meu pai, pois minha tia já havia chegado do trabalho, eu e minha mãe ouvimos o trinco do portão abrir, eu corri para me esconder, esperamos, esperamos mais um pouco, e finalmente nada. Ninguém chegou e nada aconteceu. Então minha mãe disse: “Isso devem ser os meninos brincando na rua. Abriram o portão para pegar alguma bola que caiu no jardim.” Passaram-se algumas dezenas de minutos, até que meu pai chegou e, eu já esquecida da folia da brincadeira, já nem estava mais escondida. Esqueceríamos esse ocorrido banal se algo muito estranho não tivesse ocorrido naquela noite, o que somente saberíamos no dia seguinte. Na próxima noite, acho que devia ser uma sexta-feira, eu fui brincar na rua com alguns colegas vizinhos e, em um certo momento, meu pai chegou do trabalho, deu boa noite para todo mundo, eu pedi sua benção, como de costume, e ele entrou em casa. Mal tinha ele entrado pelo portão, uma colega se virou para mim e disse: “Ontem seu Francisco (meu pai) tava muito estranho... todo vestido de preto, chegou de cabeça baixa, nem cumprimentou a gente, abriu o portão e entrou. A gente ainda deu boa noite, e nem teve resposta.” Achei tão estranha aquela história... daí perguntei qual foi o horário em que aquilo tinha ocorrido e mais de um colega confirmou que havia sido no horário aproximado em que eu, minha mãe e tia havíamos ouvido o abrir do portão, quando esperávamos justamento pelo meu pai. Obviamente eu não havia contado nada para meus colegas sobre o fenômeno do dia anterior, muito provavelmente porque, até aquele momento, eu já nem lembrava do ocorrido. Eu ainda insisti, como quem não quer nada, em perguntar se, por acaso, os meninos entraram no jardim da nossa casa na noite anterior para pegar alguma bola ou por outro motivo, mas eles negaram e ainda insistiram que a única pessoa que eles viram entrando havia sido meu pai com os trajes pretos.

Foi então que aquela história começou a tomar corpo e, nos outros dias, outros vizinhos relataram que às vezes, sempre à noite, viam mesmo um homem vestido completamente de preto, que saia da nossa casa e ia na direção de um cajueiro bastante antigo, que ficava no terreno baldio da frente. Esse cajueiro, por sua vez, já era bastante famoso entre a meninada da rua, que até lhe chamavam, carinhosamente, de cajueiro do malassombro. As intenções do tal homem de preto nunca foram claras, mas volta e meia alguém o avistava, inclusive alegando que ele era o culpado de pedras mal assombradas, jogadas em transeuntes desavisados.

domingo, 15 de maio de 2016

O Curioso causo da cobra siri


Um causo bastante intrigante é o da cobra siri, uma cobra cuja dieta é peculiar e praticamente inacreditável. Minha mãe conta que uma vizinha nossa, em certa tarde, deitou-se com seu bebê em uma esteira no quintal de casa e adormeceu. Passada boa parte da tarde, a mulher acordou com algo que sugava seu seio, e já pensando que se tratava do seu filho recém-nascido, começou a se ajeitar na direção da criança. Porém, tamanho foi seu susto ao ver que não era seu bebê que mamava, mas sim uma cobra siri. Ao mesmo tempo em que a ardilosa cobra se deliciosa com o leite da mulher, também evitava que a criança chorasse, colocando seu rabo na boca do menino. A mulher ficou horrorizada ao perceber que a cobra continuava ali se alimentando de seu leite, e, às vezes, até parecia ameaçá-la com seus olhos de serpente, esperando por um movimento brusco da mulher para picá-la ou fazer algum mal a sua criança. A mulher, no entanto, já conhecendo outras histórias de cobras siris, esperou calmamente por longos minutos, até que a cobra ficou saciada, largou seu seio, retirou o rabo da boca da criança, e finalmente se embrenhou no mato alto.
Muitas mulheres, que moravam nos sítios e engenhos, ficavam apavoradas quando tinham bebês novinhos, pois se dizia que a danada da cobra era atraída pelo cheiro do leite materno. Imagine só, além de todas as dificuldades durante o resguardo, uma cobra faminta por leite de peitos desprevenidos, aparecendo no cochilo da tarde e ninando seu bebê com a própria cauda servindo de chupeta!


sábado, 7 de maio de 2016

Cobras vingativas e outras histórias


Quando criança, eu costumava ouvir e acreditar nas estórias fantásticas envolvendo diferentes cobras com personalidades bastante antropomórficas. Minha mãe contava que seu tio Severino, quando morava no Engenho Mupã, um belo dia se deparou com uma cobra gigantesca enroscada em uma bananeira. Não é segredo que sempre foi costume em sítio ou casa com quintal grande, espantar e matar animais peçonhentos, e deixar uma cobra daquelas tão perto de casa não era boa ideia, ainda mais tendo criança pequena. Então, meu também tio Severino arrumou um porrete e se concentrou na tentativa de desentocar aquela cobra traiçoeira de cima da bananeira. O maior problema é que aquela cobra se tratava de uma papa ova - nome que se devia ao hábito do animal se alimentar de ovos de passarinho – e como qualquer caboclo bem sabia, era uma bicha daquelas mais vingativas entre todas as cobras, tão vingativa que guardava rancor e esperava até a morte, fosse dela ou de seu agressor. Pois bem, meu tio sabia quão olímpica seria aquela tarefa, e não hesitou em estudar o terreno e se precaver de todas as formas para dar a porrada certeira na criatura. Porém, ele falhou em matar o animal com o primeiro golpe e, desesperado, ele buscou refúgio dentro de casa, já sabendo que não haveria mais salvação. No entanto, a fim de se proteger e a seus filhos, sua mulher simplesmente havia trancado a porta, deixando-o do lado de fora justamente com a cobra. No meio do desespero, ele se viu obrigado a sair correndo em disparada mundo afora. Foram muitas horas fugindo daquela serpente cruel, subindo morro, descendo morro, mais outro morro, e outro morro. Ele passou a tarde inteira correndo daquela cobra dos infernos, amarela e brilhante que se apoiava na ponta do rabo e lançava suas presas na direção de qualquer cristão que atravessasse seu caminho. Foi então que, por um milagre divino, já que suas forças se esvaiam depois de tamanha odisseia, ele avistou um rio em seu caminho. Relato aqui, caro leitor, baseado no que os antigos bem conheciam e replicavam, que toda cobra venenosa pode atravessar riacho ou mesmo um grande rio, bastando, porém, procurar uma folha seca no chão que seja suficiente para que a bicha derrame todo seu veneno, e finalmente possa adentrar na água. Quem bem conhece desses causos, ainda diz que se você ficar de tocaia enquanto uma cobra faz tal cerimônia, basta se aproximar da folha e derramar todo o veneno. Quando a danada voltar para recuperar sua peçonha morrerá de tanta raiva ao perceber a maldade que lhe fizeram (Convenhamos, por que tanto ódio dos antigos com esses répteis?). Mas voltando, foi assim que meu tio se salvou da vingativa papa ova, que, à propósito, é conhecida de outro causo ocorrido em Ponte dos Carvalhos. Minha mãe conta que lá pertinho de casa, no comecinho dos anos 80, uma moça, vizinha nossa, se deparou com uma papa ova no quintal de sua casa. Assustada, ela resolveu matar a cobra com uma paulada, assim como meu tio fizera, mas sem sucesso. A cobra fugiu e a moça entrou em casa. Porém, caro leitor, foi aí que começou a épica saga da luta do homem contra a serpente, pois a bixiguenta da cobra se escondeu entre alguns arbustos e ficou a espreita da moça. Toda vez que a moça colocava a cabeça do lado de fora da casa, a vingativa cobra também o fazia lá do seu esconderijo. Isso se repetia constantemente, e a moça não conseguiu sair de casa durante todo aquele dia. Ao voltar do trabalho, seu pai logo ficou sabendo da prezepada da moça em tentar matar uma papa ova sozinha, e, bastante bravo, começou a dizer: “E tu não sabe que essa cobra só vai se aquietar quando teu caixão sair daqui de casa?!” Mesmo a contra gosto, à tardezinha, o pai da moça resolveu acabar logo com aquilo, e tratou de buscar sua espingarda. Ele desentocou o danado do bicho e um duelo entre homem e serpente se desenrolou na boquinha da noite. Tamanho foi o acontecimento que alguns vizinhos se reuniram para presenciar tão grandiosa batalha (naquela época eram raros os muros entre as casas lá no bairro, e as pessoas circulavam livremente por dentro dos terrenos uns dos outros). De um lado, o homem empunhando sua espingarda, e do outro a cobra, enorme e equilibrada sobre sua própria cauda. A bicha era tão grande que praticamente atingia a mesma altura do seu oponente. O homem mirava na cobra, mas a danada se esquivava para um lado, então o homem se deslocava e a cobra mudava novamente sua posição. Isso se repetiu inúmeras vezes, e as pessoas que assistiam à cena já temiam pela morte do pai da moça, pois, após quase uma hora, era visível o cansaço do homem e a maior raiva do animal. Foi então que uma vizinha, já idosa, se aproximou daquele furdunço e, prevendo o pior, resolveu dar fim logo àquela briga. Ela pegou um cabo de vassoura e se dirigiu até o duelo, dando uma cacetada certeira na cobra. Segundo aquela senhora, a cobra já estava tão cega de raiva que nada mais via, senão aquele homem com a espingarda e, por isso, bastava apenas uma pancada forte para que o bicho desencarnasse desse mundo.
        Uma certa vez, também na vizinhança, o marido de uma moça recém casada voltou do trabalho e percebeu que sua mulher e filha dormiam no quarto, mas que havia um estranho barulho vindo da cozinha. Ao procurar de onde vinha aquele som, ele ficou surpreso ao perceber que havia metade de uma cobra enorme em baixo do armário. Aquele rolo de cobra tinha a cabeça e uma parte do tronco, mas parecia cortada, tal qual tivesse sido torada ao meio, ao passar pela linha férrea do bairro. Ela era tão forte, que havia quebrado a parte inferior da porta de madeira da cozinha, entrado na casa e continuava a se debater. Passado o susto, o moço pegou um facão e matou aquele rolo de cobra perambulante.
        Outro causo interessante, que segundo minha mãe é verídico (Ah, caro leitor, como se os outros causos relatados aqui não fossem?!), foi o de um menino de quatro anos que, ao buscar uma bola em baixo da cama em seu quarto, acabou levando uma mordida. O menino foi levado ao hospital, mas terminou falecendo sem ninguém saber o que realmente havia lhe mordido. Após investigação na casa da criança, a perícia, surpreendentemente, descobriu um ninho com 33 cobras jararacas morando em um buraco gigantesco em baixo de sua cama! 
        Finalmente, não posso deixar de falar de uma cobra também bastante cruel, a tal da cipó. Essa cobra é tão, mas tão ruim, que seu veneno tem ação praticamente eterna, visto que o indivíduo que fosse picado pelo bicho jamais engordaria em toda vida, ficando magro e seco igualzinho à cobra cipó. A cobra casco de burro é outro bicho ruinzinho que só ele, porque de tão pequenina, consegue se enfiar entre os cascos de equinos e bovinos, e ao menor passo em falso do animal, a vingativa serpente anã lhe pica e tira sua vida. 

Esses e outros causos de cobras fantásticas eram muito comuns na região, certamente porque cobras sempre despertaram medo e fascínio no ser humano. E em uma comunidade onde nem luz elétrica havia, não era de espantar ouvir uma série de causos sobre esses incríveis seres, cujo imaginário popular nos liga desde longínqua data.

domingo, 1 de maio de 2016

O pai do mangue e outras entidades protetoras

O pai do mangue é uma dessas criaturas mitológicas que poucos conhecem, porque, convenhamos, nem todo mundo mora perto do mangue. Os antigos pescadores lá do bairro onde cresci, relatavam que esse ser protegia os mangues, e quando aparecia, costumava ser na forma de um enorme redemoinho no rio, que devorava para dentro das águas as pessoas inexperientes que se aventuravam a desbravar os mangues e seus rios. Alguns diziam que se tratava de uma criatura meio aquática meio terrestre, um anfíbio por assim dizer, que ora vagava por entre os manguezais lamacentos, esgueirando-se entre as árvores, ora nadando no rio Pirapama ou seus afluentes. Até mais ou menos a década de 90, existia um costume herdado dos mais antigos, em que alguns moradores do bairro atravessavam, a nado, o rio Piraparama no seu trecho mais estreito, apoiando-se em um bambu sustentado entre as pernas. Após atravessar um extenso mangue, uma área de restinga, cruzar o rio a nado, e alcançar a outra margem do rio, também coberta de mangue, eles finalmente alcançavam a praia do Paiva, naquela época deserta, e hoje reduto granfino da Riviera pernambucana. Dessa forma, afloravam no bairro os causos de avistamento do místico pai do mangue. Já outros moradores, especialmente os pescadores, relatam que o pai do mangue aparecia um senhor negro, com chapéu de palha e um samburá nas costas, que, tendo um caranguejo em uma das mãos, vistoriava as tocas do crustáceo sempre dizendo: “Aqui tem caranguejo. Aqui não tem”, e colocava um caranguejo em cada toca desocupada. Assim como o pai do mangue, havia também seu primo, mais bem conhecido, o pai da mata, que supostamente protegia as florestas da ação perversa e destruidora dos homens que não respeitassem aquele habitat silvestre. Creio que uma espécie de pai da mata era o Tôsseco. Essa criatura, meio homem meio árvore, gigante e seca, costumava aparecer às pessoas que se aventuravam fundo nas matas nos arredores de Recife. Quando ela fazia sua aparição, geralmente era acompanhada de sustos, em que a criatura murmurava com uma voz grotesca “Tôsseco, tôsseco, tôsseco”, enquanto caminhava lentamente com suas pernas compridas e finas de madeira. 
Aparentemente esses “pais de ecossistemas” estão extintos na atualidade, pois constantemente recebemos notícias de que trechos, muitas vezes do tamanho de países da Europa, desaparecem anualmente devido ao desmatamento das florestas no Brasil.

domingo, 24 de abril de 2016

Comadre Florzinha

A Comadre Florzinha é uma daquelas assombrações tipicamente pernambucanas, uma entidade protetora das matas, das plantas e dos animais silvestres, que habita(va) desde grandes florestas até capoeiras perdidas no meio de plantações de cana de açúcar, ou mesmo um bonito quintal cheio de florezinhas coloridas e muita folhagem.  Tia Ana conta que sua mãe, Dona Júlia, lá no Alto da Foice, mesmo lugar onde o fabuloso Tutu realizava suas peripécias nos anos 40, costumava ver a Comadre Florzinha no aceiro de uma mata, que havia atrás de sua casa. Os moradores locais frequentemente deixavam mel em uma tigela para a Comadre, uma espécie de agrado para ela não se irritar e sair açoitando os cachorros ou mesmo as pessoas com seus longos cabelos em dolorosas cipoadas. Essa entidade também aparecia comumente nos engenhos e, lá em Ponte dos Carvalhos, também fazia suas aparições. Duas vizinhas nossas viram, por inúmeras vezes, a Comadre Florzinha nos quintais das casas da vizinhança, fosse passeando entre os jardins floridos, maltratando algum cachorro moribundo com seus longos e brilhantes cabelos louros, ou mesmo brincando com algumas crianças que achavam que ela era uma menina comum desse mundo dos encarnados. Eu nunca vi a tal da comadre, mas lembro-me que, quando criança, não eram raras às vezes em que uma amiga minha desmaiava por ter visto a tal da menina lá em sua casa, fosse no quintal ou no jardim. Em meio a uma brincadeira, quando ela esbugalhava os olhos e ficava amarela que nem barro, era certeza que ela tinha avistado a Comadre.

domingo, 17 de abril de 2016

Tá correndo bicho: a menina e as ovelhas

Esse talvez tenha sido o primeiro causo que ouvi, quase que em tempo real, sobre uma criatura terrível que perambulava tão próxima a nosso bairro. Eu tinha meus seis a sete anos, e nunca me esquecerei do dia em que Tia Tereza, uma comadre de mainha, foi nos visitar em Ponte dos Carvalhos. Ela não deve ter demorado mais do que duas horas lá em casa, conversando com minha mãe, mas continuei lembrando aquela conversa por anos da minha infância. Hoje em dia, confesso que muitos detalhes se esvaíram, mas ainda me recordo da história em si.

Ela começou a contar que há poucos dias, em um sítio do Engenho Ilha, ali pertinho do bairro, havia ocorrido algo realmente sinistro. Inclusive, ela trouxe consigo um álbum onde havia algumas fotografias, e fez questão de mostrar para minha mãe. Eu, por ser pequena, nunca vi as fotos, e fiquei por anos imaginando o que elas poderiam ter de tão sinistras. Tia Tereza contou para minha mãe que tinha bicho correndo na região. “Bicho correndo” significava que alguma criatura realmente medonha e sedenta por sangue corria todas as noites, causando a morte de muitos animais e assustando aos homens e outras criaturas da terra. Contudo, o caro leitor deve perceber que a expressão “tá correndo bicho” sempre e sempre se referia a algo que não era desse mundo. Ouvir tudo aquilo me causou arrepio, medo e ao mesmo tempo fascínio na ocasião. Afinal, não eram todos os anos em que se tinha notícia que uma criatura mitológica estava à solta, e tão perto da gente.  Minha mãe replicava com suas explicações sobre o porquê de bicho estar correndo. Segundo a população local, quando um filho ou filha espancava seus pais, certamente ele ou ela estaria maldiçoado a se transformar em um bicho sinistro que correria durante sete noites a cada sete anos, até o dia de sua morte. Bom, então tia Tereza continuou dizendo que fazia poucos dias que uma mocinha, filha do dono de um sítio, presenciou algo apavorante. Essa menina criava algumas ovelhas, que todas as noites dormiam ao relento, mas muito próximas à casa do sítio. Nesta fatídica noite, a menina ouviu alguns balidos baixinhos das ovelhas, como se estivessem sendo importunadas por alguma coisa. Então, a menina levantou-se da cama e olhou pela brecha estreita da janela de madeira. Foi então que ela ficou surpresa ao ver uma espécie de bicho enorme, que não era cachorro, lobo, onça ou qualquer coisa parecida com o que se conhecesse lá pelas bandas do Cabo. Ela, apavorada de medo, não conseguiu se mexer, e ficou ali quase que paralisada, vendo suas ovelhas, uma a uma, sendo atacadas pelo bicho medonho. Ao amanhecer, a menina, que mal havia pregado os olhos durante toda aquela noite maldita, levantou-se e se dirigiu até a porta da frente. Ao sair da casa, se deparou com a triste cena, em que todas suas ovelhas estavam, de fato, mortas, secas, sem qualquer gota de sangue e tinham apenas dois orifícios meio azulados na região do pescoço. O pai da menina tirou algumas fotografias daquela verdadeira e triste chacina de ovinos, e enviou o filme para a revelação, guardando-as depois em um álbum (Eu sei, bizarro! Mas como não havia internet, era assim que as coisas eram registradas, ora!). Isso explica o álbum que tia Tereza trazia emprestado naquele dia, e atualmente bem posso imaginar que aquelas fotos mostravam apenas ovelhas mortas com marcas no corpo, mas nada de monstros aterrorizantes captados em alta resolução (o que ingenuamente imaginei na época). De qualquer forma, esse fato deve ter sido seguido de um ou outro registro de ataque a animais nas redondezas, e logo depois tudo se acalmou. Não ouvimos mais falar de bicho correndo por alguns anos, e a história ficou esquecida.

sábado, 9 de abril de 2016

Visagem na madrugada

No início da década de 80, o bairro de Ponte dos Carvalhos, principalmente no trecho onde morávamos, era bastante ermo e, ao sair tarde da noite, raramente se via uma viva alma nas ruas. Porém, em uma certa noite, quando minha tia Ana voltava para casa após ter saído em busca de um remédio para minha mãe, ela percebeu que não caminhava sozinha pelas ruas. Ao virar a esquina da avenida principal com a rua da antiga “sinuca”, um bar muito conhecido naquela região do velho Engelho Ilha, ela instintivamente olhou para trás e percebeu que havia uma mulher com um longo e esvoaçante vestido vermelho e que andava a passos largos em sua direção, praticamente cambaleaando ou balançando no ar. Nesse instante, minha tia se arrepiou da cabeça aos pés e percebeu que aquilo não se tratava de uma pessoa em carne e osso, mas sim de uma assombração que, sabe-se lá o porquê, cismou de correr atrás dela, justamente quando ela dobrava a esquina daquela encruzilhada. Sem raciocinar muito para entender o que era aquela assombração, e por que estaria atrás dela, tia Ana começou a fugir desesperada daquela mulher assombrada com um vestido vermelho e cabelos esvoaçantes. Quanto mais ela corria, mais perto a mulher chegava. Como naquela época todas as ruas do antigo Engenho Ilha eram de terra batida, e para ser sincera, até pouco tempo ainda eram, tia Ana se danou a pisar nas poças de lama e a perder os chinelos, chegando finalmente em casa esbaforida e aterrorizada. A assombração sumiu quando finalmente ela dobrou a esquina da rua onde morava. Ao chegar em casa, que ainda era iluminada por lampião, ela contou o ocorrido a minha mãe, que sempre diz que nunca viu minha tia tão descabelada e enlameada semelhante àquele dia. Parece mesmo que essa assombração costumava habitar aquele trecho do bairro, pois alguns moradores relatam que, até há alguns anos atrás, essa tal mulher de vermelho ainda aparecia nas ruas, sempre depois da meia noite, correndo atrás de pobres almas vivas desavisadas. 

O Papa Figo de Dois Irmãos

Tia Ana conta que seus vizinhos, no Alto da Foice, relatavam um curioso caso sobre uma família abastada, que morava em um casarão no bairro de Dois Irmãos em Recife. Segundo os relatos, os donos da casa frequentemente contratavam uma ama de leite, cuja função seria amamentar um suposto bebê da família. Porém, ao chegar a casa, logo a ama percebia que sua tarefa se tratava de algo um tanto quanto mórbido, pois ela deveria amamentar não uma criança, mas um adulto enfermo, cuja enfermidade supostamente seria atenuada com uma dieta, digamos, bastante estranha. Uma das amas de leite contratada para o serviço, terminou por concordar em amamentar o homem, visto que seria muito bem remunerada. Mas, tamanha foi sua surpresa ao perceber que o homem sugava tão fortemente seus seios, exaurindo todo seu leite e chegando até mesmo a sugar seu próprio sangue. A mulher, apavorada, saiu correndo do casarão, pulando o muro e sem receber nada em troca pelo serviço. Nesse ponto, caro leitor, você deve estar se perguntando onde o Papa Figo entra nessa história bizarra. A questão é que o homem enfermo era portador de lepra ou hanseníase, o que naquela época levava a graves deformações por falta de tratamento, incluindo as orelhas caídas e aparentemente crescidas, diagnóstico certeiro, para a maioria das pessoas, de que o indivíduo tratava-se mesmo de um Papa Figo – um comedor de fígado humano, especialmente de meninos, muito conhecido em Recife e arredores. Unindo a aparência do moribundo ao hábito grotesco de alimentar-se de leite materno, esse boato terminou correndo pelos bairros mais humildes, onde provavelmente moravam outras possíveis amas de leite, que passaram pelo mesmo sinistro pesadelo.     

sexta-feira, 1 de abril de 2016

O arruaceiro que ficava invisível

Costumava contar tia Ana que, durante sua infância por volta dos anos 40, no Alto da Foice do bairro Casa Amarela em Recife, um rapaz apelidado de Tutu era conhecido por suas brigas e confusões. O antigo Alto da Foice, hoje em dia chamado de Alto Nossa Senhora de Fátima, era assim chamado por causa das constantes brigas de foice entre os moradores. Era costume comum, naquela época, que alguns moradores fizessem grandes festas em seus quintais, onde havia muita dança, comida e bebida à vontade. Tutu, por já ser conhecido por suas intromissões nas festas alheias, criando desavenças e, por muitas vezes, encerrando a comemoração, nunca era convidado. No entanto, Tutu  sempre aparecia de penetra nas festas, e já macaqueados com a situação, o pessoal já dizia amedrontado:  “Lá vem Tutu!”. O danado do Tutu entrava nas festas, fazia bagunça, brigava com todo mundo, e só saia da festa quando a polícia era chamada. O tal do Tutu, mesmo seguido pela polícia, se envultava na frente dos guardas, que ficavam perdidos sem saber onde o danado do rapaz havia se metido. O povo falava que Tutu se envultava porque, na verdade, havia feito um feitiço poderoso, capaz de deixá-lo invisível ou trasformar-se em um objeto ou um animal. O feitiço consistia em encontrar um gato preto sem sinal de cor alguma, colocá-lo vivo em um caldeirão no fogão e esperar pelo seu cozimento até sua completa diluição. Feito isso, o passo seguinte consistia em separar todos os ossos do gato e, na frente de um espelho virgem, levar à boca ossinho por ossinho, fazendo uma determinada oração. Quando, o ossinho certo fosse posto na boca, o indivíduo não mais veria sua imagem no espelho. Assim, Tutu continuava a fazer suas peripécias pelo Alto da Foice, ora fazendo prezepadas com os vizinhos, ora se envultando e fugindo da polícia.

quarta-feira, 23 de março de 2016

A família de almas penadas

Esse causo ocorreu no Engenho Mupã, relativamente próximo à cidade de Escada onde minha mãe morava nos anos 50. Ela conta que sua tia e prima vivenciaram esta história quando acompanharam o então padre da cidade até um sítio neste engenho. Uma família de agricultores, que morava nesse sítio, costumava mandar seus dois filhos, de cinco e seis anos, cortar capim em um terreno afastado de sua casa, o que serviria para alimentar alguns animais do sítio. Naquela época, trabalho infantil era coisa muito comum, e os mais ignorantes não raro discursavam que criança devia mesmo trabalhar, pois brincadeira em casa de gente necessitada era coisa de pessoa mole. Pois um belo dia, essas crianças foram buscar capim e, sem mais nem menos, voltaram para casa desesperadas, deixando ferramenta, capim e chinelos para trás. As crianças só diziam que não voltariam novamente àquele local, e mais nenhuma explicação saia daquelas pobres bocas. Os pais gritaram, bateram nas crianças, fizeram de tudo para entender o porquê daquele comportamento, mas nada adiantou. Isso durou algumas horas, até que o maiorzinho, já mais cansado da surra do que assustado com o que viu, finalmente falou. Ele disse que no local onde eles comumente cortavam capim, viram três pessoas, mulher, homem e criança, vestidos de preto e olhando fixamente para eles, com olhos que não são desse mundo. O pai, em um primeiro instante não acreditou, e disse que, no outro dia, eles iriam trazer capim nem que fosse a base de cipoada nas canelas. A mãe, mais crente nas coisas do outro mundo, tentou convencer o marido que, talvez, as crianças tivessem realmente avistado alguma assombração. O marido, meio a contra gosto, mas para não contrariar a mulher, que quando emburrada mais parecia uma gato do mato arisco, resolveu ir à Escada, onde logo procurou pelo pároco local, o então padre João. Tocado pela situação, muito mais pelas crianças do que pelos pais, o padre se dispôs a fazer uma visita àquela família quão logo fosse possível. Quando finalmente o padre foi visitá-los, conversou com as crianças e pediu que eles o levassem até o local da aparição. Chegando lá, as crianças não tardaram a ver novamente as três almas penadas, bem junto a um barranco onde a prima de minha mãe, que acompanhou o padre em sua investigação, estava encostada. Essa prima saltou de susto, ao perceber que as crianças olhavam assombradas em sua direção. Já o padre, macaco velho com essas situações de visagem, pediu que os meninos perguntassem o que aquelas três pobres almas desejavam. Os meninos perguntaram e finalmente disseram que eles somente pediam uma missa. Pois bem, o padre disse que se era uma missa que eles queriam, uma missa seria celebrada para aquelas pobres almas no próximo domingo de manhã, e que a família das crianças deveria comparecer na ocasião. O problema todo começou quando, no dia da fatídica cerimônia, a família das crianças arrumou uma bela de uma romaria, com gente de vários sítios do engenho, toda aquela gente amontoada em cima de um caminhão, parando de légua em légua até finalmente chegar à igreja em Escada. Foi tanta gente a subir no caminhão, e eles atrasaram tanto que chegaram à igreja somente após a leitura do Evangelho. Foi aquele reboliço de gente entrando na igreja e tentando se acomodar. Finalmente, quando a família conseguiu prestar atenção à missa, mal puderam assistir somente ao final da cerimônia. Os pais das crianças agradeceram ao padre, e voltaram novamente em tamanha romaria para seus respectivos sítios. Porém, não se passaram três dias de tranquilidade, e o aflito pai das crianças retornou à igreja para dizer que, agora estava muito pior, pois aparentemente as almas penadas estavam aparecendo na porta de sua cozinha, e que as crianças nem saiam mais de casa com tanto medo. O padre disse que já havia celebrado a missa e que não retornaria ao sítio da família, mas que buscasse saber com seus filhos o que ocorreu de errado. O pai, chegando em casa, foi logo puxando o cipós de goiabeira e tratando de mandar os filhos resolverem essa safpadeza. Ou perguntassem o que aquelas almas dos infernos queriam ou iriam buscar capim com cipoada no lombo. O menino maiorzinho, muito aterrorizado e depois de alguns sopapos, olhou para aquelas três almas pálidas e vestidas de negro, bem ali na porta da cozinha, e perguntou o que eles ainda queriam deles. As almas somente responderam que queriam uma missa, mas que dessa vez as crianças deveriam assisti-la do começo até o fim. Pois bem, dessa vez a família saiu do Engenho Mupã até Escada sem falar nada para vizinho algum, evitando o olhar dos curiosos e todo atraso que isso poderia causar. Eles assistiram à missa desde o começo, e quando ela finalmente terminou, o padre perguntou às crianças sobre as almas penadas. Então as crianças disseram que os três estavam, agora, vestidos de branco, sorriam e acenavam com um gesto de adeus. Aquelas pobres almas nunca mais retornaram para assombrar as crianças, nem tampouco interromper seus afazeres domésticos no sítio. 

domingo, 20 de março de 2016

Não brinque com a réstia


Minha mãe foi criada por sua tia madrinha e pela avó paterna na cidade de Escada, mas durante algumas férias, quando ainda tinha por volta de quatro a cinco anos, costumava visitar seus pais em um sítio no Engenho Massauassu. A água era de poço, a iluminação de candeeiro, e a casa dos meus avós era bastante afastada de outras casas, em meio à cana de açúcar e algumas matinhas que existiam na região. Meu avô costumava usar a desculpa de que precisava comprar querosene em um barracão da usina, léguas longe dali, e todo santo dia ele saia cedo e voltava já tarde, com aqueles dois dedinhos de querosene para acender o candeeiro. Mas na verdade, ele voltava mesmo era bastante cheio de pinga. Enquanto isso, minha mãe costumava ficar com minha avó durante todo o dia, a ajudá-la com os afazeres domésticos, como ir buscar água no poço, procurar por lenha perto do aceiro da mata, cuidar do jardim repleto de cravos e, às vezes, brincar com bichinhos feitos de batata e palito. À tardinha, minha avó costumava dar banho em minha mãe usando uma bacia e um canequinho, sempre à luz do candeeiro ou mesmo de uma vela. Minha mãe conta que durante esses banhos ela achava extremamente divertido observar sua réstia na parede da casa, e que corria de um lado para outro em uma banqueta de madeira só para ver sua sombra enorme projetada na parede. Minha avó, sempre advertia: “Não brinque com a réstia, menina! Você vai se assombrar à noite”. Minha mãe não dava à mínima, e continuava brincando, por várias ocasiões em que tinha oportunidade. Até que uma noite, sem nem mais lembrar do que sua mãe costumava lhe dizer sobre essa possível assombração, minha mãe já estava deitada em sua rede, no quarto onde dormia, quando percebeu que na parede do quarto, bem a sua frente, havia uma velha. Isso mesmo, uma velha, que parecia de carne e osso, mas que ela não a conhecia. Aquela velha era muito magra, corcunda, de nariz muito pontudo e encurvado, vestida de preto, e a observava atentamente. Minha mãe jura que não era réstia de alguma planta na janela, nem mesmo que ela estava dormindo. Ela fechava os olhos e ao abrir, a velha continuava lá, materializada, olhando-a fixamente. Minha mãe começou a chorar desesperada, chamando por sua mãe, enquanto aquela velha, que mais aparentava ser uma bruxa comedora de criancinhas, sumiu tal qual fumaça no ar. Naquela noite, minha avó correu ao quarto e ficou com minha mãe até ela adormecer. Depois disso, a velha tenebrosa não voltou a aparecer, e minha mãe parou com suas peraltices, deixando sua própria réstia em paz.