Minha
mãe contava que quando vivia em Escada, por volta do ano de 64, mesmo ano em
que o Golpe militar depôs o então governador do estado, Miguel Arraes, e o
então prefeito da cidade de Escada, ficou sabendo de uma história apavorante. Era
costume, à noite, que as crianças, incluindo minha mãe, brincassem no pátio da
igreja matriz da cidade, localizada ao final de uma ladeira, enquanto alguns
adolescentes e adultos conversavam, contavam histórias ou tocavam algum
instrumento para se divertir. Entre essas pessoas, estava um colega de minha
mãe, com provavelmente seus dezessete anos. O rapaz era um galego de olhos de
gato, até bastante apessoado, que comumente, entre uma conversa e outra, tocava
seu violão na calçada de casa, que ficava um pouco acima na ladeira da igreja,
até altas horas da noite. Isso se repetia em quase todas as noites, e, em uma
delas, quando não havia mais ninguém pelo pátio da igreja ou nas ruas próximas,
por volta de meia noite e meia, o rapaz praticamente havia se esquecido do
tempo. Enquanto tocava calmamente seu violão, ele percebeu que havia uma moça,
vestida com a farda do Colégio Nossa Senhora da Escada, sozinha bem ali no
pátio da igreja. Aquela moça morena e de cabelos negros e longos começou a
fazer um sinal com a mão, chamando o rapaz até ela. O rapaz, com o fogo da
juventude e sem pensar duas vezes, parou de tocar seu violão, deixou-o no
terraço de casa e logo correu ao encontro da moça, descendo um trecho da ladeira.
Foi então que a moça pediu ao rapaz que ele a levasse em casa, alegando que
morava longe e estava com muito medo de voltar sozinha tão tarde em meio aquela
noite sombria. O rapaz ficou tocado com a situação, e já pensando em algo a
mais que aquela situação poderia lhe oferecer, logo concordou em fazer
companhia àquela moça até sua casa. Afinal, que mal haveria em ajudar uma pobre
moça, e, quem sabe, de quebra ganhar um acalento. A moça morava no chamado arruado
da linha, um pequeno vilarejo afastado do centro com cinco casas ao longo da
linha férrea que, naquela época, partia de Recife, passava por Escada e destinava-se
a Maceió. Pois bem, quando ambos chegaram próximo à vila, a uns cem metros da
primeira casa, a moça parou repentinamente. Ela agradeceu ao rapaz e disse
enfaticamente que não era necessário leva-la até a porta de sua casa, já que seu
pai não iria gostar de vê-la em companhia de um rapaz desconhecido. O moço
entendeu perfeitamente e voltou para casa depois do ocorrido. O mesmo evento se
repetiu nas próximas duas semanas, e o rapaz foi criando grande empatia por
aquela moça de olhar faceiro. Porém, na terceira e última semana, em uma noite
mais fria que o normal, o rapaz chegou a emprestar-lhe um casaco vermelho. A
moça, bem como nas outras vezes, não quis que o rapaz a levasse até a porta de
sua casa, mas disse que lhe devolveria o casaco na próxima vez em que se
encontrassem. Embora o rapaz esperasse pela companhia da moça nas semanas
seguintes, afinal ele até cultivava certa esperança em namorá-la, a moça
simplesmente sumiu por um mês. Foi então que o rapaz, já cansado de tocar
melodias de sofrimento em seu violão, criou coragem e finalmente foi procurá-la
naquelas casas do arruado da linha. A moça havia lhe dito seu nome, então tudo
que ele precisava fazer era bater nas cinco casinhas da vila e perguntar por
ela. Chegando à primeira casa, instantaneamente ele observou um quadro
pendurado na parede da sala e com a fotografia da moça, vestida com a mesma
farda do colégio. Uma senhora meio corcunda e segurando um cachimbo na boca, chegou
até a portinha de madeira partida ao meio, quase que se arrastando desde sua
cadeira de balanço. Ela o fitou tal qual tivesse preguiça de falar, e o rapaz,
meio que sem jeito, perguntou pela moça da fotografia na parede. Aquela senhora
se apresentou como mãe da moça e, em tom meio ríspido e uma cara emburrada,
pitando aquele cachimbo enegrecido de fuligem, foi logo perguntando de onde o
rapaz conhecia sua filha e o que ele queria com ela. Já o rapaz, bastante educado,
lhe contou sobre os três eventos anteriores em que havia acompanhado sua filha
até muito próximo da vila, mas que nunca a moça o deixara se aproximar de sua
casa por medo do pai muito bravo. Foi então que o semblante aquela senhora
mudou completamente, e ela o revelou que aquilo não poderia ter ocorrido já que
sua filha estava morta há dez anos. A senhora o olhou fixamente, balançou a
cabeça em negação e deu-lhe as costas, voltando para sua cadeira de balanço e
tornando a pitar seu cachimbo e encher o ar de puro fumo. O rapaz,
completamente estupefato, não acreditou naquela maluquice da velha cachimbeira,
e insistiu em ver a moça, achando que a senhora tentava ludibriá-lo a fim de
afastá-lo de sua filha. Nesse momento, a senhora já muito chateada e ainda mais
emburrada, tirou o cachimbo da boca e disse ao rapaz que fosse ao cemitério da
cidade, procurasse pelo túmulo com determinado número, e ele encontraria o que
tanto queria. O rapaz, ainda incrédulo, mas bastante curioso, saiu daquela casa
direto para o cemitério. Procurou pelo endereço indicado durante meia hora, e
quando já pensava em voltar para casa, xingando aquela velha cachimbeira
mentirosa de todos os nomes, para sua surpresa, já bem próximo do portão
principal, ele viu um túmulo bastante singelo e com a mesma foto da moça que
procurava, uma fotografia igual a que ele viu pendurada na sala da primeira casa
do arruado. Tão grande também foi sua surpresa, ao ver ali, quase que desbotado
pelo sol, seu casaco vermelho, suspenso na cruz do túmulo da moça. Depois desse
dia, o rapaz não tocou mais violão até tarde da noite em frente a sua casa, e
tampouco arrastou asas para moças indefesas que perambulavam de uniforme
escolar depois da meia noite pela antiga Escada.
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